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O Incrível Exército de Brancaleone

 

(Ou A Triste Marcha da Advocacia)

 Paulo Sérgio Leite Fernandes

O Ministro Ayres Brito (uma vez Ministro, sempre Ministro. Morre Ministro), hoje mais livre, pois deixou a toga no armário, escreve às vezes num vetusto jornal da paróquia paulista. Elegantemente, tece críticas e emite censuras. Não conta tudo, porque a família remanescente pede discrição. Aliás, assim é em qualquer entrelaçamento do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Ordem dos Advogados, a exemplo do que acontecia nas “guildas” da Idade Média: o castelão enfurnado no alto da montanha, protegido por fossos, o xerife local a lhe dar guarida e na floresta, mais adiante, as vilas, os artesãos, os camponeses, enfim, e os cervos, propriedade dos nobres, sim, mas servindo eventualmente ao saciamento da fome dos vilões (quem vive na vila é vilão). Assim era. Ainda é assim, numa disputa eterna entre quem tem e quem não tem coisa alguma. Nesse contexto, sempre houve necessidade de intermediários entre o roceiro analfabeto e o senhor feudal, mesmo com o surgimento do habeas corpus, após a famosa carta dizendo, em outras palavras, que o acusado deveria ser levado à presença do rei livre de algemas, para que fossem julgados o homem e seu corpo. É esta a tradução livre da expressão “habeas corpus”. Que coisa linda, que conquista maravilhosa a brasilidade obteve, hoje destroçada, reduzida, espezinhada, aviltada, rejeitada, amarfanhada, tribunais recusando conhecimento, admissão e exame das reivindicações postas pelos dizentes prejudicados. Nesse contexto, as próprias súmulas do Supremo Tribunal Federal, inclusive aquela sob número 11[1], são desprezadas pela Polícia Federal, enquanto os agentes capricham na exibição dos conduzidos à presença da Jurisdição, em Curitiba, ou mesmo aqui, na metrópole paulista. Antigamente, no ápice da revolução francesa, sob o trinômio liberdade, igualdade, fraternidade, havia certa dose de piedade, ou de respeito, quando os infelizes se dirigiam a madame guilhotina. O populacho se esmerava em atirar sobre os prisioneiros couves, alfaces e vegetais outros apodrecidos, sem exceção de estrume de cavalo, mas os condenados, embora esfarrapados, iam vestidos dentro das carroças, agarrando-se às grades com as mãos livres. As mulheres protegiam os seios ou as partes, ditas “vergonhas”, porque, mesmo na extrema-unção, enquanto lúcido, o quase defunto se preocupa com aquilo. Agora, em pleno século XXI, após o ser humano ter contagiado com a sapatorra o solo da lua, não se entende por qual razão a Polícia Federal se esmera em manter os recolhidos, mãos algemadas às costas, no caminho entre um lugar qualquer e o sacrossanto sacrário da Jurisdição. É espécie de comportamento havido, em psicanálise, numa classificação sádica, à maneira de alguém a empurrar leitão gordo ao fogaréu da churrasqueira. E não se diga que aquilo é feito para proteção do preso, evitando-se desatino ou prática de ferimentos em terceiros. Se e quando as algemas precisarem ser usadas, isto em condições excrescentes da regulamentação advinda da súmula 11 do Supremo Tribunal Federal, juntem-se os pulsos à frente do corpo, para que o conduzido possa, ao menos, coçar o nariz, ou porção qualquer do corpo (aquela que fica, exatamente, no meio das pernas, entre parênteses), principalmente durante verão abafado, em que mosquitos, percevejos, carrapatos e “chatos” frequentam as correcionais dos nossos prédios públicos. Ao lado das mulheres (e há mulheres também, pois suspeitas de infração penal acidulam os dois sexos), veem-se, de vez em quando, agentes fortemente armados (têm direito a tanto), usando tradicionais mascaras-ninja. É saber se o fazem por vergonha do que estão a fazer. Por medo, obviamente, não há de ser. Escondem o rosto, mas expõem cruamente as faces dos presos. Eis relevante contradição.

Respeitem-se as lideranças da Polícia Federal, devotadas, certamente, à recomposição da moralidade no trato da cidadania. Manifeste-se profundo apreço ao juiz Sérgio Moro, condutor dos anelos conducentes a um Brasil melhor. Entretanto, as grandes pretensões da humanidade se constroem sobre pequenas pretensões. Aqui, a aberta agressão a uma Súmula da Suprema Corte exige apontamento, independendo, inclusive, de prova suplementar. O juiz não pode fazer que não viu. O Supremo Tribunal Federal não pode fingir que não enxergou. Os advogados não podem cobrir os olhos, compungidos, ou aparentar, como dizia o poeta, “olhar a formiga andando na grama”. Daí, juiz Sérgio Moro, ponha-se respeitado. Os presos são seus. O magistrado, quando manda prender, sonha com o encarcerado. Se não sonha, cansou-se demais daquilo. É ruim. Se pesadelos forem, são a carga a levar para o resto da vida, inclusive após a aposentadoria. Erros e acertos hão de estar presentes, inclusive, nos últimos minutos de respiração. Não basta, juiz Sérgio Moro, explicar à Suprema Corte se houve ou não desmazelo na interceptação telefônica da Presidente da República. Isso, no fim das contas, sai nas águas. Faz parte do contraditório. Tome conta do básico. E o básico é zelar para que essa conspurcação dos direitos individuais encontre finitude.

Dir-se-ia que a reclamação deve ser feita por entidades voltadas à defesa daqueles direitos. Pouco importa. Cada advogado é responsável pela Constituição inteira e descende diretamente daqueles camponeses insurrectos que caçavam, na floresta, a animália reservada aos barões. São famélicos por liberdade. É quanto basta.

 


[1] Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.

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