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Leitura labial, continência dos militares e espionagem

Paulo Sérgio Leite Fernandes

Os cultores dos romances medievais conhecem bem as armaduras usadas pelos cavaleiros andantes  nos seus combates. Algumas pesavam quarenta quilos ou mais. Os cavaleiros eram postos nas selas por meio de roldanas. Quanto aos elmos, articulavam-se de forma a que os guerreiros pudessem respirar dentro deles. Havia viseiras de muitos tipos, mas todas  permitiam movimentação para cima, porque o cavaleiro, quando não estava lutando, precisava ver o que acontecia ao lado. Assim, sendo necessário cumprimentar alguém, ou fazer reverência, o gesto costumeiro era levar a mão à viseira, suspendendo-a. De tal hábito, segundo a crônica, veio a continência militar que, parece, é universal. Soldados e graduados fazem tal saudação.

     O assunto, em princípio, não tem semelhança alguma com o fenômeno político-criminal atravessando o país, tudo batizado com operações de nomes extravagantes. Mas tem sim. O cronista, fascinado pelos romances de cavalaria, observou as convergências  entre os visores dos guerreiros medievais e a continência dos soldados modernos. No fim, era e é questão de hábito. Costume por costume, é bom notar que a conspiração correspondente às diversas formas de espionagem (visual, acústica, eletrônica e documental) gerou em todos (mocinhos ou bandidos, pouco importa) comportamento fóbico próximo à psicopatia, porque os efeitos de intemperanças verbais captadas em gravações telefônicas ou por meio de aparelhagem mais ou menos sofisticada têm sido terríveis. Haja vista, no contingente, a captação do diálogo entre Dilma e Lula, apenas a título de exemplo, deixando-se a definição jurídica daquilo para as calendas, pois a análise seria explosiva. Apenas para não se dizer que o escriba está com preguiça de escrever mais, veja-se o recentíssimo episódio de gravação telefônica de diálogo entre o então Ministro Jucá e o interlocutor Sérgio Machado, seu amigo, certamente, porque os assuntos tratados não seriam trocados com meros circunstantes. O Senador Jucá, fosse qual fosse o sentido do diálogo, já deveria ter aprendido que a confiabilidade dos outros, mormente quando postos sob investigação, não vale um tostão furado, principalmente após muitas e muitas ocorrências análogas. Dentro do contexto, quem confia minúcias políticas, econômicas, científicas ou até amorosas por qualquer meio de comunicação hoje existente é ingênuo ou dotado de dose menor de inteligência.

     Dir-se-á que o escriba perdeu a mão na crônica. Não, há ligação estreita entre a viseira de Lancelote do Lago (é lembrar “As Brumas de Avalon”), e a  continência à bandeira nas manhãs e no ocaso dos quartéis militares e o medo, quase pavor, exibido, inclusive, por autoridades postas nos mais altos escalões da República, de que criaturas não bem intencionadas possam escutar ou ler os lábios das mesmas, enquanto sussurram assuntos ou conversas capazes de produzir  profundos efeitos na Nação. Tal particularidade sempre aparece quando, numa dessas reuniões oficiais envolvendo membros do Poder Legislativo, Executivo ou Judiciário, a manobra mais comum é colocar a mão na boca, sobre os lábios, pois há gente especializada em ler as palavras ditas, não se falando em aparelhagem adequada à captação dos sons e mesmo sussurros a muitos e muitos metros de distância. Em tais ocasiões, os participantes têm duas alternativas: ou usam a concha da mão ou não falam. Há, evidentemente, algum outro diálogo correspondente à boa qualidade do “buffet” ou ao último jogo de futebol. Parece mentira, mas é verdade.

     Finalize-se sugerindo, frente à relevância do assunto, que o gesto conhecido como “mão-na-boca” venha a substituir oficialmente a continência militar. Fica mais prático, tem caráter absolutamente geral e, no fim das contas, constitui uma inovação no território brasiliense, auxiliando, inclusive, o aprimoramento dos ajustes concretizados durante os repastos no restaurante que reserva ainda, embora vazia, a mesa de Ulisses Guimarães.

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