Obrigações Institucionais dos Conselhos de Medicina
* Paulo Sérgio Leite Fernandes
Obrigações Institucionais dos Conselhos de Medicina
(Ou “O caso do médico Eugênio”)
Os Conselhos profissionais (Ordem dos Advogados, dos Contabilistas, Conselhos Estaduais e Federais de Medicina, Farmácia e quejandos, constituem herança do período medieval. Naquele tempo, forçados pela necessidade de organização e de resistência aos senhores feudais, os mestres em diversas profissões (obreiros, construtores de igrejas, armeiros e outros “eiros”) fundaram as denominadas “corporações”, instituindo normas para a inscrição de seus filiados. Havia exames, sim, alguns deles severíssimos, realizados sob formalidades estritas. Daquele tempo vetusto da cavalaria andante ao mundo hodierno sobreviveu pouca coisa. A Europa mantém a tradição legislativa atinente à espécie. Nos Estados Unidos, somente a título de exemplo, resta uma sobra daquele formalismo. Tocante a advogados, inexiste, lá, a Ordem respectiva, substituída por entidade privada (Bar Association), cuja atividade é sancionadora, sim, mas não constitui pressuposto para o exercício da profissão. O Brasil se mantém numa postura clássica, embora haja tentativas legislativas reiteradas de reduzir a influência dos Conselhos Profissionais. Fundamentalmente, a razão é simples: a Ordem dos Advogados, mesmo punindo severamente os transgressores do Código de Ética, exerce atividade protetora, exigindo, nas hipóteses de submissão dos mesmos a processos criminais, julgamentos justos e adequados à Constituição. Outro não poderia ser o procedimento, porque a origem dos Conselhos Profissionais, como já assentado, diz respeito ao cinturamento, dentro das respectivas Câmaras, da atividade punitiva.
Acontece às vezes, entretanto, fenômeno que polui, e muito, a finalidade primacial das chamadas Corporações Profissionais. Há condutas de filiados ferindo, em princípio, dispositivos do Código de Ética Médica e do Código Penal. Vêem-se os Conselhos, conseqüentemente, dentro de angustiante dilema: apuram as hipóteses de infração com muito cuidado ou se deixam arrastar pelo estrépito publicitário, procurando proteger-se do rescaldo a tisnar a respeitabilidade. A apuração, assim, é levada a termo com extrema rispidez, tendo-se como comprovado o que sequer foi compactado em procedimento regular. Em suma, o filiado é punido antes de ser a hora de punir, é execrado antes da execração e é apontado à comunidade, antes do julgamento, como réu já censurado formalmente. Não é correto, não pode ser aprovado e não há de ser admitido tal comportamento. As corporações – e corporações são – precisam compenetrar-se da função censória primordial que lhes foi atribuída, ou seja, aquela de processar e julgar, com extrema compostura, aqueles profissionais que, por hipótese, se conduziram mal. Para isso, é indispensável muita coragem da instituição censória. Já se disse, e é voz corrente, que em períodos de crise é muito mais fácil a condenação. Satisfaz-se o povo, representado este último pela ficção denominada vontade popular, desvencilha-se a instituição de um sério problema e já pode encarar o futuro com postura imaculada. No meio disso tudo, as garantias de defesa vão às tintas, parte-se para comportamento absolutamente ilegal e se coloca o acusado em posição totalmente desequilibrada. A título de mera exemplificação, surge pelos jornais (curiosamente, é a imprensa a divulgadora das providências processuais) a notícia de que o médico seria submetido a perícia psiquiátrica por comissão instituída pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Em suma, três eminentes psiquiatras visitariam o indiciado Eugênio no podre Distrito Policial em que foi posto com absoluto desprezo a premissas processuais, perscrutando-lhe os segredos da alma e sobre o todo emitindo laudo atinente aos fatos em perquirição (confissão ou negativa), motivos, realidades concretas e virtuais etc., isso sob a conotação do segredo exigido pelos Estatutos da Corporação. Nesse meio tempo, o paciente será examinado através de uma grade microperfurada, como se fosse um animal chafurdando em lamaçal malcheiroso. A ilustre comissão comparecerá com aventais brancos, tomando cuidados imensos para não os conspurcar na sujeira existente no dito “cárcere especial”. O indiciado, certamente, há de confiar nos peritos, porque peritos são. O único problema subsistente, a par dos remanescentes adstritos à extravagância do local reservado ao exame psiquiátrico, é o segredo profissional exigido do médico, do advogado e daqueles que se dão a outros ministérios diferenciados. Segundo o noticiário, os peritos se dispõem a examinar, em data ainda não conhecida, aquilo que se passa nas entranhas da mente do periciado. Hão de lhe cutucar a mente, assemelhadamente à aferição das gorduras dos bichos enclausurados. Depois, relatarão o que viram, o que ouviram e o que sugerem ao plenário, fazendo-o sob o pressuposto das duas primeiras regras exigidas ao exercício da medicina: respeito ao corpo, à mente do examinado e confiabilidade. A seguir, as conclusões seguem à Justiça Penal. Ou não, dependendo da capacidade de resistência da Instituição. Parece brincadeira de criança. Mas não é.
* Advogado criminalista em São Paulo há quarenta e dois anos. Esta crônica é personalíssima. Retiro meus títulos.