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DANTON FOI À GUILHOTINA, MAS NÃO PERDEU O CABELO

Todo cronista tem vícios ou parâmetros nos seus escritos. É uma espécie de obsessão. Vira-e-mexe o tema volta à memória, numa espécie de clonagem não querida, mas onipresente. No meu caso, o mote é a revolução francesa. Liberdade, igualdade, fraternidade, triunvirato que levou à lâmina de Madame Guilhotina milhares de pescoços. Dizem que a parte ferrosa ou cortante daquele instrumento pesava 40 quilos, merecendo boa graxa nas cantoneiras, para descer livre e rápida sobre o condenado. Afirma-se, também, que os dias de decapitação, na Praça da Bastilha, eram muito comemorados pelo populacho, pois as crianças – principalmente estas – se divertiam muito quando, postas em local privilegiado, podiam ver as cabeças, já separadas dos corpos, movimentando os olhos e a língua, em reações reflexas. Vi isso certa vez, assemelhadamente, quando minha avó espanhola – eu tinha 8 anos – degolou uma galinha. O bicho ainda ensaiou voar. Sem cabeça é claro, mas que fez, fez.

Conta a lenda, respeitante à Bastilha, que Danton foi visitado pelo carrasco à noite para o tradicional corte de cabelo, porque os homens da época, e alguns entre nós, o usam comprido. Aquilo é muito curioso porque os fios, muito finos, embaraçavam a lâmina daquele ser diabólico, impedindo a dilaceração perfeita. Afirmam alguns historiadores que Danton não o permitiu. Houve quem, após a execução, guardasse um chumaço daquela cabeleira famosa.

Os revolucionários daquele tempo eram quase meninos. O mais velho, creio, era Marat, com seus 37 anos. Uma garotada sim, assassinando-se mutuamente, pois nem Robespierre escapou.

O Brasil de hoje me parece uma arremedo da revolução francesa. Não se diga que há semelhança física na amputação das cabeças, mas, figurativamente, é assim. Uma severidade cruenta domina o Poder Judiciário, o Ministério Público e os órgãos federais encarregados da perseguição e do abate. Com ou sem razão, e talvez com muita razão, os censores afiam as lâminas e partem para a degola, sem comiseração qualquer. Há  em tudo uma certa dose de sadismo, porque o preso, no ato da captura, é exposto à visitação pública, assemelhadamente às carroças rangendo nas ruelas da velha Paris. Dizia-me um motorista de praça, hoje de manhã: “- Muito bem feito, doutor, com esse tal de Eike. Tiraram o cabelo dele, porque é o regulamento. Preso pega piolho. Ficar careca ajuda bastante”. De qualquer forma, Eike Batista, de mãe alemã, aprestou-se a voltar ao Brasil, para responder ao processo e se defender. Tosaram-lhe os pelos da cabeça, constando tratar-se – a peruca – de uma das mais sofisticadas produções da arte capilar. Reduziram-no a um qualquer, sendo exibido pela imprensa do mundo inteiro como se fosse um troféu.

Não o vi algemado, exceção, certamente, porque a grande maioria dos capturados é mostrada com as mãos amarradas às costas, impedindo-se o investigado, o réu, de sequer coçar as partes, coisa horrível, sim, sendo bom lembrar que as índias, nos rios do Amazonas, tomavam banho nuas, mas cobriam o rosto quando alguém se aproximava.

Não vale a pena ir adiante. Não compete ao velho escriba emitir juízo de valor sobre quem sequer teve a oportunidade de exercer o contraditório. Entretanto, ultrapassando já os 60 anos de advocacia criminal, não tenho lembrança, nem na pior fase da ditadura, de aviltamentos e exposições análogos da espécie humana. O milico aprisionava e torturava em segredo. Nós estamos, sob os auspícios de um Brasil democrático, a aviltar os acusados, mostrando-os ao povo como se fazia antigamente, na Inquisição. Em outros termos, o prisioneiro é oferecido por policiais ocultos sob máscaras ninjas, forma estranha de aprisionamento, não se sabendo quais as razões fundamentais da ocultação. Em outros termos, o detido tem a face plenamente escancarada, mas o captor se esconde. É prudência? É medo? É timidez? É acanhamento? É vergonha? Qual ou quais os fenômenos responsáveis pelo precatamento?

Dir-se-á haver mais um bandido na cadeia. Se verdade for, deve consumar-se em obediência a todas as regras postas na legislação processual penal e nas convenções internacionais. Diga-se, só para finalizar, que o ser humano pode ser privado de tudo, menos da dignidade. Relembre-se que a castração de tal qualidade levava os esbirros da ditadura a deixar as mulheres peladas, à frente, durante os interrogatórios. Uma forma de tortura, sim. Obrigar homem ou mulher a colocar o rosto à mostra é, indubitavelmente, uma forma de tortura. Sofisticada e muito, mas é sevícia. La Nave Va.

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