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A satanização do processo penal brasileiro

Paulo Sérgio Leite Fernandes

 O título é duro, rude, não jurídico e, num certo sentido, malcriado. Os ícones do bem e do mal são constantemente usados pelo povaréu, aqui e ali, desde os gregos aos egípcios, chegando, na modernidade, aos invocados no candomblé e na umbanda. Satanização é, assim, uma palavra muito forte, na medida em que serve para classificar negativamente uma conduta, crença, uma criatura malévola, enfim. Dir-se-á então, que dar ao processo penal brasileiro um epíteto de tal natureza é séria ofensa àqueles que interpretam maldosamente os dispositivos postos na lei de procedimento criminal e nas legislações subsequentes ao código respectivo. Se quiserem dar ao texto tal interpretação, tanto faz, mas ao escriba as vertentes do processo penal brasileiro, na atualidade, começam ser empurradas violentamente para tal concepção. Note-se, a título de introdução, o vetusto conteúdo da Exposição de Motivos do código em vigor, assinada pelo praxista Eduardo Espínola Filho, de quem o escriba tem, ainda, grosso manual. Afirmava Espínola: “- O projeto não deixa respiradouro para o frívolo curialismo, que se compraz em espiolhar nulidades. É consagrado o princípio geral de que nenhuma nulidade ocorre se não há prejuízo para a acusação ou a defesa.” E assim por diante. Isso aconteceu em 1941. Daquela data a esta a interpretação do texto do código de procedimento no correspondente às nulidades mudou muito, sendo estimulada pelo momento político atravessado. Veja-se que a promulgação do Código de Processo Penal foi seguida, à frente, pela Constituição de 1945, belíssima por sinal, das melhores que o país já teve, compondo-se a interpretação dos dispositivos procedimentais de acordo com a inspiração constitucional. Dentro do contexto, as afirmativas postas no intróito da legislação primeiro referida não tiveram grande influência porque houve época, no Brasil, em que as nulidades estipuladas tinham aplicação sagrada, podendo os acusados apontá-las com certo grau de confiabilidade. O contraditório processual penal, então, tinha uma tramitação razoabilíssima, presentes, teleologicamente as garantias estipuladas na Constituição Federal. Daí, veio o golpe de 1º de abril de 1964, com implantação seca e prática de comportamentos terrivelmente arbitrários, sem exceção de capturas ilegais e torturas habitualmente impostas aos perseguidos pelo sistema. A lei de segurança nacional tinha seu poder de império, a Justiça Militar exercitava suas funções nefandas e o direito imperante era a preservação do império do Estado. Em suma, não havia direitos contra o Estado. O Ministério Público atuava sim, e muito, como extensão do poder instituído, instrumentalizando inclusive as “Comissões Gerais de Investigação”. A ditadura se enfraqueceu, houve o clamor pelas “Diretas-Já”, o militarismo cedeu passo às seguidas manifestações populares e veio, ao fim, a Constituinte, materializando-se na Constituição de 1988, vigendo ainda, com seus recortes advindos das emendas  a lhe servirem de apêndice. É preciso notar, nesta apertadíssima síntese, que a Constituinte, como todas, foi levada a prumo sob influências múltiplas, diretas quando significando a vontade  ou a tendência de cada qual dos  envolvidos nos debates parlamentares, e indiretas em função dos pressionamentos  exercitados  por grupos políticos, coalizões empresariais e concentrações em geral, notabilizando-se de alguma forma, em lados quiçá opostos, o mesmo Ministério Público e a Ordem dos Advogados do Brasil. Ali, ou naquela época, a instituição dos promotores de justiça agiu com extrema articulação e insistência. Era presidente da Associação Nacional do Ministério Público o promotor de justiça Fleury Filho, advindo da Polícia Militar do Estado de São Paulo, com passagem honrosa na política estadual e, certamente, exercendo liderança na instituição. Trabalhou bem aquele segmento da acusação pública. A peculiaridade é que a Ordem dos Advogados não soube, não pôde ou não quis disputar. Aquilo tudo resultou, em primeira mão, na potencialidade que o Ministério Público tem hoje no país. Não é esta, entretanto, a razão estrutural do resumo porque, enquanto se fala de demonização ou satanização do processo penal, fala-se de fenômenos decorrentes  da desenfreada corrupção assolando o país nesses anos todos, notando-se, então, um movimento geral de moralização, do qual o povo faz parte efetiva, enquanto pede a prisão e condenação dos infratores. Dentro de tal contexto, ressurge com enorme vigor o texto posto na Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, aplicável agora com muita atualidade, não pelo que diz, mas pelo ajustamento à maneira com que as nulidades, absolutas ou relativas, têm sido interpretadas pelos tribunais. É bom dizer, então, que as causas de invalidação do procedimento penal vêm sendo descartadas aos piparotes, sob a alegação de inexistência de prejuízo às partes, imprimindo-se ao processo, em si, movimentação desprezando quaisquer obstáculos concernentes ao descumprimento das fórmulas. É preciso dizer que, no passado, a audiência realizada sem o “pregão” poderia ser invalidada, tudo em recordação do chamamento ou convocação feito às partes pelo pregoeiro, tocando o badalo ou o sino. Havia fórmulas sacramentais, vigentes algumas santificadas no passado, hoje desprezadas e atiradas ao lixo, porque não impedindo as finalidades do ato. Mais ainda, o Código de Processo Civil vem sendo aplicado analogicamente ou em interpretação extensiva, justificando decisões judiciais muitas vezes aterrorizantes no descumprimento das formalidades. Disso resulta que as garantias constitucionais têm sido muito aviltadas, dando-se exatamente razão a que se afirme  que o Código de Processo Penal brasileiro vem sendo satanizado.

A síntese não vai mais longe. Diz, é certo, com o julgamento do procedimento correspondente à cassação da chapa Dilma-Temer, acentuando alguns cuidar-se de processo dizendo com lei eleitoral, nunca influindo o clássico juízo de condenação. Mas é, sim, tal legislação, submetidos a regras gerais, porque deve seguir normas adequadas ao contraditório dito penal, guardando-se as formalidades exigidas, inclusive quanto às nulidades passíveis de declaração. Daí não se justificar, no meio dos debates, a afirmativa, feita por um dos eminentes Ministros, no sentido de que aquele julgamento, em certas oportunidades, deveria dar preferência ao exame do fundo sobre a forma. Se e quando assim fosse feito, teríamos a adequação estrita da expressão usada no título da crônica, ou seja, a assertiva teria um condão demoníaco sobre as garantias individuais. La Nave Va.

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