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O Estadão acordou

(sobre procedimento não é inquérito)

Leitor atento de “O Estado de São Paulo”, o cronista brinca, às vezes, dizendo ser acordado todas as manhãs pelo fiel cão de estimação “Baltazar”, cujo nome foi encontrado em “Memorial do Convento”, de Saramago, aquele mesmo sargentão que tinha “Blimunda”, a vidente, como companheira, não sendo a única mulher a dispor de capacitações psíquicas extravagantes, porque nós homens, muito bobos, achamos que conseguimos guardar segredos das nossas. Mentira, pois elas sabem tudo, apenas fingem desconhecimento…

Na verdade, o cão “Baltazar” já se foi, infelicitado por um dono criminoso de canil. Entretanto, é história a não ser descrita. Dia desses o velho escriba a conta, se a saudade bater maior. Volte-se ao tradicionalíssimo jornal “O Estado de São Paulo”. Este está despertando, sim, porque há um editorialista a tecer, de vez em quando, críticas ao comportamento do Ministério Público brasileiro, boa opção, aliás. A nobilíssima e muita respeitada instituição, algumas crônicas atrás foi inscrita no binômio “o bem e o mal”, pois embora voltada ao primeiro, escorrega perigosamente no autoritarismo, gerando sérias preocupações quanto à ilegalidade de alguns comportamentos seus. Não há novidade alguma na dualidade de atividades de alguns integrantes de Ministério Público, porque o ser humano, psiquiatricamente, carrega dentro de si a dupla potência (a bondade e a maldade), cantada, aliás, por Danilo Caymmi, uma história linda passada entre as ondas do mar* (v. vídeo abaixo). Não se entenda, com chamamento ao diferenciado cantor e compositor, que a crônica seja menos séria. Não, apenas abranda um pouco a rispidez dos comentários postos sobre a tendência saudável, manifestada recentemente no vetusto órgão de imprensa referido, a respeito da conduta de alguns setores do Ministério Público brasileiro, imprudentemente liberados por porções da Jurisdição. Na verdade,  a edição de hoje, 1º de agosto de 2017, traz texto não assinado, com o título “Procedimento não é inquérito”, espelhando, é claro, a posição da empresa sobre o assunto, na medida em que artigos não assinados constituem o centro da vontade dos responsáveis pelas publicações. É uma pena que aquele artigo não seja assinado, pois se tem a impressão de ser o produto da manifestação de um fantasma, sem nome e cara. Melhor seria que a respeitabilíssima instituição desse à crônica a nominação de seu autor, porque o diálogo ficaria mais fácil, afastando-se de um eventual debate entre um pigmeu, “este cronista”, e o gigante Golias, “O Estado de São Paulo”, não se sabendo quem é o companheiro do escriba. De qualquer forma, há no editorial referido crítica muito bem posta quanto ao comportamento de segmentos do Ministério Público, tocando os chamados procedimentos investigatórios criminais, os famosos “PICs”, que podem, aliás, ser coisa ainda mais remota, restando nas gavetas dos gabinetes. A opção assim chamada surgiu com certa proximidade, porque, antes, o Ministério Público usava os inquéritos civis públicos para os fins pretendidos, vestindo-os com roupagens de natureza criminal, ou seja, disfarçando uma figura na outra. Depois disso, a instituição assumiu formalmente o procedimento investigatório sob atribuição exclusiva de promotor de justiça, dispensando, inclusive, o inquérito policial. Tal atividade está a medrar em uma ou outra comarca pequena do Estado de São Paulo, não valendo a pena dar exemplos bem definidos, pois constituem procedimentos penais entregues a outros defensores, merecendo, destes, o ataque adequado. Vê-se, portanto, que este escriba vai adiante das afirmativas contidas no jornal “O Estado de São Paulo”. A razão para as críticas é muito simples: os inquéritos policiais podem e devem ser examinados pelos advogados na hipótese de investigações feitas regularmente. Referentemente aos “PICs”, ou a procedimentos internos ainda mais primitivos, os investigados sequer sabem o que há, porque existem hipóteses, inclusive, de delação ou colaborações premiadas tomadas exclusivamente nos sacrários dos gabinetes do Ministério Público, colocadas tais confissões, portanto, sob segredo de família. Dentro do contexto, as movimentações internas são postas a lume aos pedaços, de acordo com a conveniência de momento, traduzindo-se, eventualmente, em contato direto entre os eminentes promotores de justiça e o juiz oficiante. Os causídicos, nessa perspectiva, restam como aquele “João-bobo”, famoso boneco usado pelas crianças num tempo que não existe mais.

Não se discuta o básico, ou seja, a nobilíssima instituição posta na berlinda tem produzido resultados proveitosos na luta contra a corrupção brasileira. Até aí merece aplausos veementes. Entretanto, tem ido longe demais, porque deixada livre pelo Poder Judiciário, fazendo eminentes magistrados, eventualmente, a função de partícipes das extravagâncias.

Dir-se-ia que o cronista parte para fabulações. Não, houve prova, lá atrás, de que a instituição, em Presidente Prudente, mantinha local preparado para captação direta de comunicações telefônicas, ou mesmo ambientais, em presídio circunvizinho, consumando tais atividades com a cooperação da Polícia Militar. Diz isso, é claro, com o fato de o Ministério Público possuir “ou ter possuído”, por conta própria e sem depender de qualquer empresa intermediária, instrumental adequado à captação e conservação de segredos alheios, com ou sem autorização judicial, pois não se consegue chegar a tais particularidades. Mas que houve, houve, porque aconteceu tomada de preço para a aquisição da parafernália, parecendo que, antes, havia locação ou auxílio externo para tanto, significando que empresas exercitando tal comércio tinham pare no conhecimento das indiscrições alheias. O assunto caiu no vazio na atualidade, pois, quem sabe, tais peculiaridades passaram a constituir rotina.

O editorial posto sob exame perfunctório poderia ficar no vazio, não fosse entrevista prestada por um jovem delegado de Polícia Federal ao programa “Roda Viva”, na TV Cultura, ontem, 31 de julho de 2017. O rapaz é uma autêntica máquina de falar e pensar, constando ser presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal. Competentemente, explanou dissensões mantidas com o Ministério Público Federal, agora, principalmente nas questões relativas às denominadas delações premiadas e∕ou colaborações recompensadas, ou, por fim, acordos de leniência. Acentua que a Polícia Federal, sendo órgão voltado especificamente à investigação, tem atribuições ligadas, inclusive, a esse tipo de comportamento procedimental, na medida, quem sabe, em que a polícia judiciária funciona com permissivos legalmente estatuídos, podendo, portanto, sustentar o conteúdo formal da prova obtida. E tem razão, porque seus confrades, “os promotores de justiça”, exercitam seu mister sobre documentação difusa e não autorizada por lei expressa, obrigando-se, no passado, à instauração de inquéritos civis públicos com entranhas absolutamente criminais, espécie de “transgênicos” , vindo o termo à memória, porque constituindo o assunto do momento nas redes sociais.

Não se sabe bem o que vai suceder no futuro, mas o Poder Judiciário em geral, com relevo para juízes de comarcas pequenas, precisa refletir seriamente sobre o bailado – e bailado é – estabelecido entre a jurisdição e acusação, concretizando-se as ligações perigosas em segredo, num – vai e vem – episódico feito à sorrelfa, crepitando sob os panos da Justiça até momentos dramáticos consubstanciados nas prisões temporárias ou preventivas. Quanto ao velho escriba, que já viu tudo em 62 anos de advocacia criminal, há uma antevisão de dificuldade imensa da jurisdição, presentemente e mais adiante, em acorrentar a potencialidade materializada enquanto os acusadores públicos exercitam suas atribuições. São benfazejas (em parte) as condutas, insista-se, mas ferem profundamente, em muitos aspectos, os direitos e garantias individuais. Apenas para exemplificar e arredondar o texto, diga-se que muitas prisões preventivas e temporárias são imediatamente revogadas quando antecedidas por delações consubstanciadas nos gabinetes de representantes do Ministério Público, sem participação mínima da polícia judiciária mas autorizadas, acredita-se, por eminentíssimos magistrados. O esforço  de contenção desse tipo de produção de prova é deferido, é claro, àqueles encarregados da fiscalização, ou seja, os pretores, mas já se viu hipótese de um ou outro tribunal coonestar a atividade probatória referida, deferindo, inclusive, mandados de segurança impetrados na competência penal. A capacitação, na hermenêutica judicial, da extravagância de tais métodos vai demorar, conduzindo-se o processo penal, infelizmente, no meio tempo, a uma “nazificação”, insidiosamente contagiadora dos princípios democráticos norteados a poder do sofrimento de milhares de brasileiros. Tais receios são maiorizados, principalmente, pelos sobreviventes testemunhas daqueles tempos pérfidos, bastando lembrar da manutenção, durante a ditadura, das satânicas “Comissões Gerais de Investigação”. Mas isto é assunto para mais tarde.

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