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O General foi para casa, mas a baioneta ficou na cozinha

Repercute na imprensa, hoje, dia 26 de março de 2018, declaração do general Antonio Hamilton Martins Mourão, feita há pouco, no sentido de que se o Judiciário não fosse capaz de sanar a política existente no país, isso seria imposto pelo exército, por meio de uma intervenção militar.

O general, ocupando o cargo mais alto no exército brasileiro, tem um currículo invejável. É militar desde 1972. Fez vários cursos e exerceu muitos comandos, um destes no Sul, em Porto Alegre. Nasceu em agosto de 1953. Em 1ͦ de abril de 1964  tinha 10 anos e alguns meses, não valendo a pena a exatidão. Era ainda uma criança. Talvez brincasse com bolinhas de gude, jogasse um pouco de futebol na rua e pensasse, nos seus botões, em ser militar mais tarde, como o pai, também general de divisão. Serviu durante 49 anos, passando à reserva em 28 de fevereiro deste ano. Sempre acompanhou as conturbações políticas brasileiras, não deixando de expressar suas posições rudes quanto aos caminhos delicados atravessados pelo país a partir de épocas remotas. Parece que será candidato à presidência do clube militar.

Extrai-se, do que foi exposto, uma premissa curiosa: o general, em 1ͦ de abril de 1964, apenas começava a viver, embora participando, é certo, de uma comunidade doméstica militarizada. Tais características, de um lado, são boas. De outra parte, podem cimentar, na cabeça do infante, menores propensões a um respirar libertário, sobretudo tangendo a disciplina acentuada a presidir relacionamentos comunitários. Assim, o respeitado general já era predestinado às armas em 1972. Em 1975 se tornava aspirante a oficial. Já se percebe que o desenvolvimento biopsíquico do respeitadíssimo soldado se fez enquanto o Brasil era cinturado pelos grilhões da ditadura. A mocidade daquele tempo (1964 em diante) tinha três caminhos: quedar-se inerte, agasalhando-se sob os colchões do quarto de dormir; inscrever-se em movimentos estudantis, ditos de esquerda, arriscando-se a prisões e riscos diversos; glorificar-se à direita, evoluindo mais tarde em centros acadêmicos voltados ao chamado “comando de caça a comunistas”. Não se sabe quais as tendências havidas nas academias militares, mas vale raciocínio no sentido de ser a ditadura, na caserna, bem acolhida pelos estudantes, mesmo porque ali era “a casa do pai”. O aspirante Mourão cumpriu o seu destino: filho de militar hierarquicamente muito bem posto, acostumou-se à utilização dos coturnos apertados e à marcha cadenciada aos sons dos clarins, prestando continência. Em síntese, se profissão fosse, o aprestamento para a guerra constituiria, certamente, um projeto de vida excelso. Sendo paixão, a comunhão com as armas constituiria um sacerdócio.

Assim foi. Uma coisa ou outra, mas foi assim.

O hoje general Martins Mourão amadureceu, conquistou postos, liderou, envelheceu e, agora, continua ligado ao passado, pois quem foi o que foi nunca esquecerá aquilo que foi. Continua militar. Não se sabe, quando na reforma, se o beneficiário carrega consigo ou não o fuzil, a arma de estimação, as dragonas, alguma peça de fardamento, ou somente as recordações. De qualquer maneira, velhice é posto e a memória, a menos que o portador a perca em razão de afecção cerebral, é herança sendo conduzida à cova. Bem ou mal, nosso arquivo mental mantém ativo o regramento concretizado nos neurônios.

A partir de março de 1964, vieram o AI-5, a guerrilha do Araguaia, a Copa do Mundo de 1970, o chamado “Milagre Brasileiro” e os denominados “Anos de chumbo”. Chegaram também os alicates, os choques elétricos, os encarceramentos em calabouços podres, as machucadoras multifárias no corpo dos torturados e, a bem dizer, veio a especialização na inflição de sofrimento aos inimigos do sistema. O próprio cronista se recorda de dístico posto sobre o portal da polícia política entronizada em São Paulo: “Contra a Pátria não há direitos”. Surgiram, em sucessão, vários presidentes não merecendo enunciação maior numa crônica muito seca. A tortura prosseguia abertamente. Houve muita morte, no período, resultando em múltiplos cadáveres, cujos ossos não foram localizados. O general Mourão acompanhou tudo, sim, pois precisava fazê-lo, concordando ou não com aquilo. Cuida-se, aqui, de um contexto dramático, porque o militar, ali, concordava ou se desgraçava. Mourão precisou optar, é certo, fazendo-o autenticamente ou por fingimento. Mas optou. Mas escolheu o seu lado. E sobreviveu, aglutinando experiência, chefias e patentes.

Chegou um tempo em que o país passou à redemocratização. O militarismo entrou em decadência ética e política. O povo foi às ruas. Tivemos uma nova Constituição.  O país tem uns 30 anos de liberdade. No entretempo, muita água passou, Sarney, Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique (duas vezes), Lula (também em dobro), Dilma (uma vez e mais uns quebrados) e Temer (com os naturais tropeços de estilo). A nação caminha conturbada pela experienciação de uma democracia angustiadamente renascida. O general Mourão, agora, caminha pela velhice e a terceira idade. Deve dormir bem, acordado, quiçá, nas madrugadas, pelo toque dos clarins. Pensa, é claro, na época em que tinha apenas 10 anos, subindo os degraus da existência até a escola militar, os desfiles, os disparos dos canhões no aprendizado, o primeiro salto como paraquedista, a queda livre (teve?), o chimarrão no Rio Grande do Sul, as promoções, as estadias no interior e, no fim das contas, precisa pensar também nos torturados do regime terrível ultrapassado, nos corpos vertendo sangue nos calabouços na polícia política, nos enterramentos clandestinos sob a mataria dos sertões do Araguaia, nos gritos vazando pelas paredes da rua Tutóia, da desgraça, enfim, recaindo sobre os ombros de todos aqueles que de uma forma ou de outra exerceram, sem reclamo ou resistência, um pedaço de autoridade naquele tempo. Há também outro exército, este último constituído por fantasmas incomodando os sonos dos partícipes do tempo que passou. É uma multidão sim, general Antonio Hamilton Martins Mourão, não repicando tambores com baquetas militares, mas beliscando afanosamente o pescoço de quem finge deslembrar o acontecido. Cuida-se, nisso, no mínimo, de relembrar os refugos do golpe totalitário abrangendo a nação brasileira durante o período aziago. Não se sabe, durante os vinte e poucos anos do militarismo imposto ao povo, o que o respeitado general fazia. De repente, não cooperou para aqueles estado de coisas, mas deve dizê-lo, se não o fez. Justificando o feito, há de carregar consigo aquela multidão de zumbis a esmurrar as portas mal fechadas do passado, buscando o não esquecimento. Tal rememoração, só ela, é um castigo. Não uma vingança, mas uma exigência, sim, para que não se tente levar a nação ao desespero daquela época.

Este velho marinheiro já era grande em 1964. Deu o seu pedaço para a redemocratização do país. Fê-lo humildemente, mas fez. O general tem sessenta e poucos anos. É homem sério. Se não o fosse, não chegaria ao posto hoje ostentado. As declarações do militar Martins Mourão, se e quando feitas no domínio pleno das faculdades intelectuais, constituem muito séria ameaça à população. Grande parte dos brasileiros não conhece o que nos sucedeu. Apenas ouviu dizer. Os sobreviventes podem contar as histórias. O general não há de gostar daqueles relatos. E nem se poderia justificar tais fatos sob a afirmativa de existirem, à época, torturadores que choravam enquanto seviciavam os infelizes. Pranteavam, diga-se bem, mas mordiam as carnes do torturado, chorando junto com o infeliz. Já era um consolo, caro general Martins Mourão. Vale a reflexão.  E la nave va.

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