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ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE

(Roberto Delmanto)

Após cinquenta e um anos de advocacia criminal, atuando tanto na defesa quanto na assistência de acusação, penso que o julgamento do casal Nardoni, realizado há cerca de oito anos perante o Tribunal do Júri do Fórum Regional de Santana, em São Paulo/SP, e que, na época, abalou a opinião pública brasileira, não foi imparcial nem justo.

O excesso de publicidade em torno do caso desde o início, com ênfase nas provas técnicas coligidas pela polícia, os sentimentos arquetípicos envolvidos – morte de uma criança, pai e madrasta suspeitos e, logo depois, acusados –, levou a um prejulgamento do processo.

Todos, ou quase todos, operadores do direito ou leigos – mesmo sem conhecer os autos – já tinham seu veredito: culpados do hediondo crime! E, por isso, odiados…

A revolta da sociedade, já então cansada da violência, da corrupção e da impunidade, a todos contaminou, exigindo-se uma punição exemplar.

Nos cinco dias que durou o júri, a tensão e a hostilidade atingiram níveis absurdos. Os familiares dos acusados eram vaiados quando adentravam ao Fórum, e seu ilustre advogado, além das vaias, quase foi agredido. Mesmo após o anúncio da sentença, comemorada com gritos e até fogos de artifícios, populares tentaram alcançar os camburões que conduziam os condenados ao seu destino. Outros, mais descontrolados, quiseram invadir o Fórum para agredir os familiares dos réus, tendo a Polícia Militar sido obrigada a lançar gás de pimenta para dissuadí-los…

E eu pergunto: nesse “clima de guerra”, com a pressão da imprensa e da sociedade em patamar certamente nunca visto na recente história forense, havia condições para um julgamento justo e imparcial, como exige a lei, a moral, a garantia constitucional da presunção de inocência e o respeito à dignidade humana dos acusados? Acho que não.

Se os jurados optassem pela absolvição, como se garantiria a saída deles do Tribunal? Quais as represálias que sofreriam naquele momento e depois, como os familiares dos acusados que tiveram suas casas pichadas no dia seguinte?

Em outros países, como nos Estados Unidos, casos como esse que mexem com o recôndito da alma, com os nossos sentimentos mais profundos e despertam paixões incontroláveis – correm em segredo de justiça, justamente para preservar e garantir a justeza e a imparcialidade do processo e, principalmente, do julgamento.

Entre nós, o Código de Processo Penal, em seu art. 20, caput, autoriza que a autoridade policial decrete o sigilo do inquérito quando “necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”. Na fase do processo criminal, o art. 189, caput, inciso I, do Código de Processo Civil, aplicável à ação penal por força da analogia permitida pelo art. 3º do Código de Processo Penal, prevê correrem “em segredo de justiça os processos… em que o exija o interesse público”.

Ora, manifesto é o interesse público e da sociedade em se garantir processos e julgamentos justos e imparciais.

No caso Nardoni, o sigilo do inquérito foi inicialmente decretado, mas, logo depois, desrespeitado. E, durante o transcorrer do processo, dele não mais se cogitou.

A inexistência de um processo justo e imparcial é o caminho mais fácil para o que, a meu ver, é a maior tragédia do processo penal: a possibilidade de um erro judiciário… Que eu, lamentavelmente, acredito ter ocorrido neste que foi chamado “o julgamento da década”.

Com efeito, como, senão sob forte emoção e pressão populares, aceitar a tese da acusação de que um pai – que não se provou nem se alegou ser louco – jogou pela janela uma filha viva? E isso, para ocultar uma suposta tentativa de homicídio por parte da madrasta? Ou seja, consumar um homicídio para encobrir uma tentativa? Praticar o mais para esconder o menos?

Há uma máxima forense que diz que “o que não está nos autos não está no mundo”. Quer dizer: as partes e o juiz só podem se basear nas provas que constam do processo. A realidade mostra, todavia, que, muitas vezes, acontece justamente o contrário: nem tudo que está no mundo está nos autos…

Uma hipótese muito suspeita não foi, no caso, investigada.

Refiro-me a um policial militar que, trabalhando em uma guarnição da região, foi a primeira pessoa estranha que, sem ter sido chamada, foi vista no prédio instantes após a queda da menina. Sua presença no local ficou documentada pela televisão. Meses depois, o referido policial militar foi alvo de uma investigação que apurava a prática de pedofilia por membros da corporação. Com autorização da Justiça Militar, interceptado seu telefone, descobriu-se que ele tentava conseguir um encontro com uma menina de cinco anos, a mesma idade de Isabella. Decretada sua prisão provisória, oficiais foram até seu apartamento para cumprí-la. O policial militar pediu para ir ao banheiro antes de acompanhá-los. Aí, entrou no banheiro, trancou-se e suicidou-se com um tiro… O fato foi noticiado pela imprensa.

Ao que sei, esse caso de pedofilia não foi, entretanto, levado aos autos, não tendo sido requisitada cópia de toda a investigação policial-militar realizada.

A grande maioria das pessoas, leigas ou não, considerou, contudo, as provas técnicas suficientes, o julgamento imparcial e a condenação justa. Diminuiu-se o sentimento de impunidade, aplacaram-se as consciências e silenciaram-se os sentimentos inconscientes. O casal voltou aos presídios em que estavam e onde até hoje permanecem para cumprir suas penas, e eles e o caso tendem a, progressivamente, ser esquecidos.

Até que surja outro episódio criminal a despertar as mesmas emoções e paixões coletivas, e o prejulgamento da mídia e da sociedade, comprometendo o sagrado direito de todo acusado a um processo e a um julgamento justos e imparciais, que afastem o perigo, sempre presente, de um erro judiciário.

E, entre risos e lágrimas, acertos e erros, mas sem perder a esperança de que a justiça dos homens um dia se torne menos falha, assim caminha a humanidade…

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