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OS NOTÍVAGOS

(Roberto Delmanto)

Há pessoas que, por razões que desconheço, talvez metabólicas, “trocam o dia pela noite”.

Uma delas foi o eminente jurista e advogado Vicente Ráo, Catedrático de Direito Civil do Largo de São Francisco e Ministro da Justiça, que deixou, entre outras obras, o livro jurídico com o mais belo título que conheço:” O Direito e a vida dos direitos”, significando que, enquanto as leis ordinárias mudam com o tempo, os princípios maiores, basilares em um Estado de Direito Democrático, permanecem.

Meu pai Dante, no início do curso universitário, trabalhou em seu escritório como datilógrafo. Percebendo o talento do  jovem auxiliar, o Prof. Ráo convidou-o para ali permanecer, a princípio como estagiário (chamado na época de solicitador acadêmico)e, mais tarde, como advogado.

Porém, seduzido por um júri que assistira na adolescência em Botucatu, sua cidade natal, do qual participaram dois grandes tribunos da época, Antonio Augusto Covelo e Alfredo Pujol, preferiu a área criminal.

Foi, então, trabalhar no escritório  do notável criminalista José Adriano Marrey Júnior, presidente do Partido Democrático no Estado de São Paulo, o qual tinha nas Arcadas, como uma espécie de filial, o Partido da Juventude.

Fazendo parte deste, meu pai veio a conhecer o inesquecível  Mestre, que o convidou a ingressar em seu escritório, onde permaneceu por vários anos, tornando-se seu braço direito e discípulo preferido.

Marrey Júnior foi o responsável  por transformar a oratória de então, pomposa  e rebuscada, na oratória da argumentação que até hoje predomina, tendo meu pai sido seu continuador.

Ano mais tarde, sempre que Vicente Ráo tinha uma causa cível importante, com repercussão na área criminal, indicava meu pai.

Certa ocasião, o Professor telefonou-lhe, convidando-o  para ir ao seu escritório no dia seguinte, às 11 horas, para uma reunião.Tendo meu pai respondido não ser possível, pois às 13 horas tinha uma audiência em comarca vizinha, Vicente Ráo explicou que o encontro não seria  na parte da manhã, mas às 11 da noite.

Foi, aí,que meu pai lhe disse: “Professor, o Sr. me desculpe, mas a essa hora já estou no terceiro sono…”Marcou-se, então, nova data, com horário um pouco mais cedo.

Outro notívago foi o grande advogado Agostinho José Rodrigues Torres, meu tio por parte de mãe.

Atuando por décadas em Botucatu, cidade onde nascera, grangeou merecida fama em todo o  Estado, principalmente como criminalista.

Orador notável, brilhou sobretudo no júri, tendo o salão do Tribunal Popular do Fórum botucatuense, projetado por Ramos de Azevedo, recebido seu nome.

Era um declamador insuperável, principalmente quando declamava, de cor  e sem qualquer lapso, “ O Navio Negreiro” de Castro Alves, o maior poema épico brasileiro. Sua simpatia  era tão contagiante que, diziam, até a parte contrária, quando terminada a causa, não raras vezes   tornava-se seu amigo.Entretanto, assim como Vicente Ráo, seu expediente não começava antes das 12 horas.

Também eu durmo tarde e não acordo cedo, tendo meus melhores trabalhos forenses sido redigidos no período vespertino ou à noite.

Em um dos grandes júris no qual atuei em comarca do interior, como assistente de acusação,  meu maior desafio era estar bem desperto, e disposto, às 9 horas da manhã, quando  as sessões, que se prolongaram  por vários dias, impreterivelmente começavam.

Entretanto, acredito que não chego a ser propriamente um notívago…

 

 

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