Precisão Cirúrgica no Processo Penal

OU

Em jogo a criptografia

 

(Paulo Sérgio Leite Fernandes)

 

      O escriba descobriu, octagenário, que se transformou em cidadão reflexivo e obediente, pois leva em plena consideração o recomendado pela saúde pública quanto a permanecer em casa, usar máscara e, assim, proteger a si e aos próximos. Assim, deixa a parafernália eletrônica montada no escritório e permanece no domicílio, porque, se fosse para a rua, seria a segunda vez em que sairia clandestinamente. A primeira se deu quando este antigo cavaleiro andante da advocacia criminal tinha apenas doze anos. Fugiu de casa. Foi localizado pela família na madrugada,faminto mas decidido, ainda, a lutar pela manutenção de seus ideais mal instalados, ainda, naquela cabecinha de um quase adolescente. Então, a crônica vai escrita, hoje, livrando-se o escriba, inclusive, de depreciativa opinião própria sobre a imagem, na medida em que, contrariamente àquilo praticado entre os profissionais da televisão, não usa a maquiação recobrindo, em alguns, as cicatrizes deixadas pelas batalhas da vida. É bom que assim seja, pois o escrevinhador retoma contato direto com o computador, abandonado há muito em favor do puro e simples ditado a fiel assistente.  Seguem, agora, breves comentários sobre  tema do momento, ou seja, o conflito instalado entre o ex-ministro  Sérgio Moro e o Presidente da República, transparentemente cuidado pela imprensa após liberação pelo Ministro  Relator. Não se impressionem  os leitores, nem se preocupem aqueles diretamente ligados ao tema: nenhum médico cioso de  preceitos éticos  interferiria no mérito de cirurgia praticada por colegas no corpo de paciente alheio. Precisam considerar a questão os advogados criminais. Portanto, teçam-se brevíssimas considerações sobre a chegança à Polícia Federal do  ilustríssimo declarante:

         a)- O  contexto das declarações veio em 10 laudas, se tanto, um texto quase lexicamente perfeito, demonstrando cuidado grande no registro das considerações do expositor.

       b)-Isso significa o uso, em cada lauda digitada, de  bastante tempo, porque, extraídos os vazios deixados pela alimentação e uma ou outra saída para as necessidades básicas do existir, cada palavra e cada linha foram objetivadas cuidadosamente, sem perda de valoração a poder de comentários ou incidentes inúteis ao esclarecimento dos fatos.

        c)- Cuidando-se de declarante envolvido diretamente no mérito do conflito, o dever de dizer a verdade, premissa introdutória do testemunho em procedimentos criminais, fica fora de questão. Qualquer deslize, ali, sendo relevante, seria apurado, mais tarde, em denunciação caluniosa, ou criminalidade incidental outra, mas nunca em  falso testemunho.

         d)- O declarante tem, em princípio, a convocação de testemunhas cientes de particularidades ligadas aos assuntos versados na notícia de fatos criminosos remetida pelo Procurador Geral da República. Há então, paralelamente, conjunto de providências a tomar, observando-se a celeridade determinada pelo Ministro Relator. Além disso, havendo perícia sobre prova gravada em celulares ou meios afins,  peritos oficiais se encarregarão da sofisticada particularidade. O  escriba se recorda da primeira vez  em que teve uma dessas caixas  nas mãos. Um pequeno tijolo preto, com respeitável antena, portado orgulhosamente e prenunciando, já, o agasalhamento universal.  Centenas de segredos se põem ali dentro. Variadíssimos aconchegos são acarinhados, mais ou menos, sempre, raramente, ou nunca, conforme o dono, o posseiro ou o clandestino a manipulá-lo.  Aquilo é um adereço, uma parte do corpo, um vício ou uma bomba a explodir à frente, conforme as circunstâncias, servindo, inclusive, de auxílio em audiências, ou a jornalistas enquanto perenizam entrevistas imprudentes. Celulares servem, também, à geratriz  de crises políticas relevantes, a exemplo daquela infelicitando um  Presidente da República ainda hoje respeitado.  São os chamados acidentes de percurso, concretizados quando um dos circunstantes confia demais no outro, ou quando todos desconfiam de todos, característica muito cômica levando às vezes a uma gargalhada geral. Em outras oportunidades há constrangimento. Por exemplo, numa reunião fechada entre vários juristas, o hospedeiro dá a uma senhora muito elegante, também presente, a oportunidade de ir ao reservado, levando a bolsa, para “passar um pouco de pó no nariz”, forma elegante de a convidar a se desfazer do celular,  deixando-o com o motorista na recepção. O cronista pensou nisso enquanto revia, poucos dias atrás, originais de romance denominado “ Joseph, o cigano”.  Um capítulo contava cena lembrando Lord Byron, em suas recepções : cada convidado deixava à entrada  espada e adaga num cabide apropriado, prevenindo-se  eventual descompasso ou traição.  Vem a propósito, dando-se mais leveza à crônica, cena de filme de faroeste em que  bela frequentadora do carteado trazia, presa à liga da meia, um pistolete Derringer “em ponto de bala”, como se diz entre os aficionados. Acontece…parte da prova a ser colhida no procedimento cujo entreato se vê hoje em todos os jornais se  fará, com certeza, no ventre de celulares. O escriba  apenas passou os olhos pelo noticiário, mas uma das reportagens acentuava que a polícia faria a degravação das mensagens constantes dos aparelhos eventualmente exibidos pelos possuidores. Qualquer celular de qualidade traz a certificação de criptografia. Assim, vindo a público qualquer gravação antes apagada pelo proprietário, este ficaria descompromissado de qualquer acusação de deslealdade na captação da prova, tanto que a teria inutilizado,crente  na garantia do fabricante.

         Volte-se ao jogo dialético posto no intróito: às vezes, todos têm a prova do todo, como  cartas do mesmo naipe repetidas no mesmo baralho. Nessa medida, não há quem apresente uma, porque o vizinho exibirá cópia da mesma. No fim de tudo, a expressão de um é inescrutável, a do outro não.  As cartadas são elevadas. Dizem com muitos milhões de espectadores encavernados, cada qual mascarado pela pandemia, precisando proteger-se e às famílias. Sentados junto ao pano verde, os apostadores sacolejam as algibeiras. Quem tem a melhor carta no baralho? Ver-se-á .

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