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O MESTRE DO RECIFE

Roberto Delmanto

 

         Dois grandes penalistas brasileiros, naturais de Pernambuco, mereceram o título de “O Mestre do Recife”. O primeiro, no passado, foi Aníbal Bruno; o segundo, que nos deixou agora, foi seu legítimo sucessorROQUE DE BRITO ALVES, um dos nossos doutrinadores penais mais citados no exterior.

         Doutor em Direito pela Universidade Federal de seu Estado, lecionou em várias conceituadas Faculdades, transmitindo a seus alunos o ideal de um direito penal democrático, justo e humano.

         Suas aulas, palestras e conferências eram inesquecíveis para os que as assistiam, contagiados pela sua cultura, didática e insuperável verve. Defensor Público por toda a vida, sabia, como poucos, ilustrar a teoria com a prática, inclusive pelo relato das defesas que fez junto ao Tribunal do Júri, no qual brilhou como poucos.

         Ainda jovem, ao defender um passional, quando o promotor, exaltado, disse aos jurados: “o amor não mata”, Roque, para deleite da assistência, de imediato retrucou: “o amor não trai”…

         Outra defesa histórica foi a de uma jovem, ainda virgem, que matou o marido na noite de núpcias quanto ele lhe forçou a atos ultrajantes e antinaturais, logrando sua absolvição.

         Sua inspiração foi seu pai José de Britto Alves, também advogado criminalista, que quando se dirigia ao Fórum para defender um acusado de homicídio não deixava de rezar pela vítima.

         Roque nos legou inúmeras obras jurídicas, sempre festejadas, das quais minha preferida é a intitulada “Dos Indícios no Processo Penal”, edição Forense, 2003, na qual sustentou, de forma irretorquível, que para uma condenação criminalnão bastam indícios, sendo imprescindível a prova plena, segura e inquestionável da materialidade e autoria.

         Com ela, na trilha iniciada por CesareBeccaria, demonstrou todo seu apreço pela garantismo penal.

         Dono de um grande senso de humor, era um contador de causos, com os quais nos brindava em conversas, artigos, aulas, palestras e conferências.

         Um deles, que transformei em crônica, conta a história de um acusado de ter matado um desafeto com o qual discutira dias antes. Do fato não havia testemunhas presenciais, sendo a única prova um chapéu achado na cena do crime. Enquanto a acusação nele se apegava, pois todos, na pequena cidade, sabiam que o réu sempre o usava, a defesa demonstrou documentalmente que aquele modelo havia sido fabricado em grande escala e distribuído na região, inclusive na comarca, sustentando não haver prova de que o chapéu encontrado pertencesse ao cliente.

         Durante o júri, o surrado chapéu foi mostrado pelo promotor como evidência aos jurados, que acabaram, no entanto, por absolver o acusado por insuficiência de provas. Não tendo o Ministério Público apelado, a decisão transitou em julgado.

         Passadas algumas semanas, o réu compareceu ao Fórum pedindo para falar com o juiz. Atendido, indagou-lhe se seu caso havia de fato terminado. Ante a confirmação do magistrado, com a maior “cara-de-pau”, perguntou-lhe: “Então será que agora o senhor poderia devolver o meu chapéu?”.

         Não existindo em nosso sistema penal a revisão de uma absolvição, o juiz, estupefato, “o pôs para correr”…

         Falando e escrevendo com perfeição várias línguas, Roque fez inúmeras conferências no exterior, alcançando o respeito de grandes penalistas estrangeiros.

         Homem simples, mas refinado, viajava anualmente para fora do país, sempre passando por Paris. Brincava que ia visitar a “Monalisa”.

         Na última sustentação oral que fiz perante o Tribunal Regional Federal da 5ª Região, no Recife, ele teve a gentileza de me acompanhar. Não só me inspirou e me deu sorte, como pude verificar pessoalmente o alto prestígio que desfrutava junto aos colegas, Procuradores da República e Desembargadores Federais.

         Sua cultura era das mais vastas, não se limitando à jurídica. Conhecia como poucos a literatura nacional e estrangeira, a mitologia grega e os fundamentos da psicanálise.

         Um dos maiores colecionadores de porcelanas do país, doou grande parte ao Governo do Estado de Pernambuco, desejoso que mais pessoas pudessem apreciar sua maravilhosa coleção.

         Muito ligado aos irmãos e sobrinhos, nunca se casou, dizendo-me, certa vez, que se casara com o direito penal. Através de uma de suas sobrinhas, eu me comunicava com ele por email. Enviava-me livros, artigos e publicações, sempre com a gentil dedicatória “fraternalmente”, e eu os retribuía.

         Quando ia a Recife, o visitava, e ele quando vinha a São Paulo, fazia o mesmo.

         Sua amizade começou com meu saudoso irmão Celso, seu admirador, e continuou comigo e com meus filhos Roberto e Fabio. Nunca deixamos de citá-lo em nossos livros.

         Roque se manteve lúcido, ativo e vigoroso até o fim de sua vida, apesar da idade avançada.

         Sobre a conduta do ser humano através da história, concluiu:

“Existe a maldade extrema,

         Porém também existe a bondade infinita”.

         Homem essencialmente bom e idealista, deixou centenas de admiradores entre os operadores do direito, no Brasil e no exterior, e um inestimável legado para as futuras gerações de amantes do direito penal.

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