As armas e os barões assinalados

OU

 Na defesa das prerrogativas dos advogados

 

Missa de sétimo dia de Waldir Troncoso Peres

Este velho cavaleiro andante da advocacia criminal mantinha até pouco tempo atrás amigável disputa com o excelente criminalista Tales Castelo Branco: brigavam pelo decanato.   O Paulo Sérgio precisou baixar as armas.  Tales é um ou dois meses mais antigo na arte de advogar.  Assim, somos sobreviventes ainda saudáveis, octogenários certamente, mas enfrentando boas briga se desafiados. Tales só perde num ponto: na verdade, Leite Fernandes enfrenta e enfrentou a pandemia sem sair do escritório. Não conseguiria advogar em casa, porque seus livros, quadros e arquivos exigiam presença constante. Paulo Sérgio tem piano lá e aqui. Sempre toca um pouquinho do lado de cá. Os vizinhos gostam. Desde que não haja excesso no uso do teclado. Além disso, a documentação haurida em 60 anos de advocacia é preciosa e bem organizada. Por exemplo: o retrato de Noé Azevedo, inaugurado na antiga sede da OAB após descerramento feito com discurso deste vetusto rábula. Ou a foto de Hebe Bonafini, “La Madre de Plaza de Mayo, “ambos emocionados após lançamento do disco” Las Locas”, música escrita pelo Paulo Sérgio durante a ditadura argentina.  Ou o rolo de filme, em papel grosso ainda, contendo fotos de Wladimir Herzog, pendurado pela ditadura e ainda hoje não velado como era preciso. Ou, ainda, o discurso que Cid Vieira de Souza fez na inauguração do ano judiciário, durante o golpe, sem antes ler o escrito, no Tribunal de Justiça, precisando esconder-se depois, porque os militares o queriam.  Este escriba escrevia os discursos de Cid. O presidente da OAB paulista engasgou, mas disse tudo que estava ali, um rasgo da coragem a caracterizar a liderança dele entre os advogados daqui.
Há muitas razões para o introito, despontando a necessidade de fixar que este criminalista é uma das poucas testemunhas sobrantes do golpe de 1964, sendo depositário, inclusive, das becas de outros companheiros que já se foram, constitutivas de sudários usados ocasionalmente, hoje, em ocasiões exigindo o reforço dos companheiros idos. Assim, o Paulo Sérgio é vidente e observador quase solitário daqueles tempos difíceis da história da nação, perpassada, aqui, por episódios variados, alguns trágicos sim, outros meio cômicos, como na noite em que surgiu, durante reunião da OAB paulista, notícia de haver no prédio uma bomba pronta a explodir. Breve discussão terminou com uma aposta: quem fugisse seria obrigado, depois, a pagar o jantar no pequeno restaurante onde jantávamos, após as reuniões do Conselho…
Um tempo complicado, sim, mas repleto de simbolismo, como quando este criminalista se tornou depositário do ancinho que um verdugo da polícia política paulista usara para efetuar a prisão de José Dirceu, anos antes, no famoso episódio do Congresso de Ibiúna. Só o próprio poderá dizer se já o devolveram, pois alguém veio buscar aquela enferrujada ferramenta, a pretexto de levar a lembrança às mãos daquela importante personagem da história do Brasil.  Explique-se: o beleguim, preparando-se a conduzir Zé Dirceu ao carro   de presos, tinha a metralhadora nas mãos. Colocou-a no ombro, procurou alguma coisa na relva, achou aquele instrumento de jardinagem e o empunhou, tosquiando o moço até a viatura. É verdade? O verdugo já morreu. Perguntem a Dirceu. O escriba tem, em algum lugar, uma foto da viatura e de um ou dois componentes da diligência.
Essas coisas aconteciam há sessenta anos, ou pouco menos. Existem sobreviventes, é claro, mas, na OAB, poucos conseguiram atravessar o período todo. Alguns segredos se mantêm meio desfeitos, como aquele da edição do Jornal do Advogado, após a notícia do assassinato de Wladimir Herzog, o jornal foi em parte apreendido, fugimos com o resto e o distribuímos em Santos, há um ou outro exemplar por aí. É apenas um pedacinho do que já foi. O resto se põe na memória de raros.
Qual a razão principal dessas divagações? É a pouca vergonha perdurando em torno do que se tem feito, no Ministério da Educação, com o estudo e o ensino do Direito. Faz muito tempo, já, este muito antigo criminalista vem acompanhando a volúpia, instalada naquelas gavetas, com que se criam Faculdades de Direito no Brasil, em número assustador. Falta pudor aos ministros que por lá passaram e aos pretendentes que conseguiram, de uma ou outra maneira, multiplicar as instituições, a partir de Jarbas Passarinho, havendo uma ou outra exceção que, se e quando positivada, constituirá motivo de aplauso do articulista. Em outros termos, quem se sentir agredido com a pluralidade denunciada, que o diga publicamente, demonstrando sua honorabilidade. Um milhão e duzentos mil advogados vagueiam por aqui, acentuando-se que há um a cada 190 brasileiros, mostrando-se a Ordem impossibilitada de obstar o despudor. O que há lá dentro? Como aconteceu? Quem ou quantos praticaram tal despudor contra a dignidade da nossa beca? E agora, com a pandemia, instalando-se o chamado aprendizado “online”, como ficamos? Quais ou quantas empresas ou instituições se preparam para os cursos via computador, desdobrando-se as salas de aula como depósitos de milhares de gafanhotos estimulados por provedores gulosos? Em vez de edifícios custosos mantidos pelas instituições, a eletrônica serve de suporte ao canalizador virtual de uma polimorfia a espalhar ficção a custo de retribuição financeira nababesca. É preciso saber o que há por lá, no Ministério. Quem, quando, onde e como continua a dominar aquilo, infiltrando-se mais ainda, durante a crise vertente, os aviltadores da nobilíssima profissão? Milhares de advogados, premidos por dificuldades financeiras, cerraram as portas de seus escritórios. Faz-se a comunicação, nos processos, por via eletrônica, enganando-se a maioria enquanto procura debater pela “internet”, esquecendo-se de que os primitivos deixavam suas imagens impressas nas pedras das cavernas, e depois no couro ou no papiro, aquilo ficava ali, nunca numa fria tela adormecida numa lan house frequentada por aflito advogado necessitado de ganhar uns trocados. E nem se fale de particularidades absorvidas pelo cérebro humano, nunca máquina registradora da volubilidade da computação, mas sim organismo consciente a manipular ( a expressão é esta ) a imagem fixada definitivamente numa folha de papel. Num sentido muito brusco, rude, básico até, o computador corrompe a intelecção de juízes, deforma a fixação das provocações psíquicas nas sinapses, engana, ilude, aborrece até, servindo de instrumental episódico às tropelias dos emporcalhadores da missão  de educar. Parece extravagância esta dissertação, mas não é. Com um pouco de esforço, um muito caro edifício destinado a uma Faculdade de Direito se transforma num hotel de luxo, ou alcouce privilegiado.
Perceba-se a hipotética distonia no desenvolvimento do começo, meio e fim da crônica. Inicia-se de um jeito, termina-se de outro. Pensa-se, parece, em graduação “online”, ou seja, por correspondência (a palavra é esta). Quando a notícia surge, a atividade já está em marcha. Mensalidades baratas, professores ganhando misérias, multiplicação do corpo discente, estelionatários do ensino jurídico em ação, milhares de advogados (e advogadas) mendigando o pão aqui e ali, por culpa nossa, com certeza, antigos e novos dirigentes postos na OAB. Deixamos acontecer “Procurando bem, todos temos nossas perebas”, entoou Chico Buarque. A imaculabilidade não se encontra entre os homens, mas há pecados, pecadinhos e pecadões. Quem vai meter a colher de pau no Ministério da Educação, mexendo na roupa de cama?
O escriba terminava enquanto procurando tricotear as falhas da natureza humana. Isso sempre acontece quando posto em situações de emergência. Aquela exibida na foto inauguradora da crônica era uma delas. Falou na missa de sétimo dia de Waldir Troncoso Peres, o advogado dos advogados, faz muito tempo, aquele morto ilustre é exemplo para todos nós. A escolha do orador foi muito simples: era o mais antigo, o teimoso, aquele que poderia dizer mais, talvez.  Os arquivos do Paulo Sérgio guardavam aquilo. Enquanto falava, o velho fabulador modulava uma expressão em latim: Mea Culpa.

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