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O artigo ora reproduzido foi publicado pela primeira vez em 28 de janeiro

de 2014 e republicado em 11 de agosto de 2020 na Folha de São Paulo.É

um ato de amor à capital paulista. Um amor verdadeiro, de quem amaa

cidade em que nasceu, apesar de seus problemas e dramas. É tambémuma

palavra de esperança em seu futuro,  já prenunciado pelas flores e pássaros

que insistem em nela permanecer…

 

SÃO PAULO

DRAUZIO VARELLA

 

Um dos encantos da cidade de São Paulo é a imprevisibilidade, a confusão

urbana que obriga a reinventar-se.

 

A cidade em que passamos a infância nos perseguirá pela vida afora.

 

Podemos mudar para outras regiões ou países distantes, viver por décadas

na neve ou no sol escaldante, na calmaria da província ou no burburinho

da metrópole, não importa, as ruas de nossos primeiros passos estarão em

cada esquina.

 

Nasci no Brás, bairro cinzento, com ruas de paralelepípedos, em que o apito

das fábricas marcava a rotina dos operários com as marmitas, os afazeres das

donas de casa e da molecada que passava o dia comigo no futebol na calçada

da fábrica, em frente à casa em que morávamos.

 

Numa época em que as famílias levavam as cadeiras para fora nas noites de

calor e as contas de luz, água e telefone eram pagas no centro, a cidade já

havia crescido tanto que para não me perder na multidão da rua Direita, Praça

da Sé ou viaduto do Chá, precisava agarrar firme a mão enorme de meu pai.

 

São Paulo seguiu em delírio de grandeza. As fábricas emigraram, a prestação

de serviços virou fonte de riqueza, avenidas, lojas, bancos e supermercados

chegaram a bairros distantes. Moradias e escritórios cresceram na vertical.

Para ver a lua, corro risco de vida debruçado na janela do meu prédio. É

um formigueiro de gente afobada. O trânsito insuportável não respeita

horário nem fluxo e contrafluxo. A violência urbana, enfermidade

contagiosa, virou fobia universal. Construímos mais cadeias superlotadas.

 

São Paulo é sobretudo feia. Esbanja mau gosto no neoclassicismo brega dos

edifícios com nomes franceses, nas vitrines, no desleixo generalizado com

as fachadas,nas grades que aprisionam famílias, na pichação grosseira, na

cafonice das decorações natalinas, na iluminação mortiça das noites, na

americanice grandiloquente dos shoppings, no emaranhado de fios elétricos,

nas casassem reboque das favelas e da periferia inchada, no lixo das

calçadas, na tragédia da cracolândia e na miséria andrajosa dos moradores

de rua.

 

Conheci cidades sem um cisco no chão, habitadas por cidadãos instruídos,

à beira-mar ou no meio das montanhas, com horizontes a perder de vista,

ruas sem imprevistos, silenciosas às oito da noite, bares que fecham às dez.

Lugares idílicos, aprazíveis num fim de semana, mas para neuróticos com a

alma impregnada pela balbúrdia paulistana, como este que vos escreve,

morar neles seria flertar como suicídio.

 

O que me encanta e desafia em São Paulo é justamente o estar por fazer,

a imprevisibilidade, a confusão urbana que me obriga a reinventar o jeito de

viver a cada ano que passa.

 

É a paisagem humana, o caldeirão de negros, brancos e orientais, senhoras

de roupas recatadas, meninos com o boné virado para trás, homens de

gravata, casais que se beijam na boca no meio dos transeuntes, mulheres

sedutoras, homossexuais de mãos dadas, camelôs, bêbados, travestis, putas,

entregadores de pizza e a legião de motoqueiros que zumbe entre nossos

carros atolados no asfalto.

 

Pernambucanos, paraenses, gaúchos, bolivianos, europeus, asiáticos,

africanos, a cidade acolhe a todos. Não que os receba de braços abertos,

longe disso, mas se chegam dispostos a trabalhar ninguém lhes pergunta

de onde vieram.

 

Hoje, há mais verde nas ruas. Alheios à poluição florescem ipês amarelos,

roxos e brancos, flamboyants vermelhos e alaranjados, tipuanas de flores

miúdas que atapetam as calçadas, jacarandás mimosos e as sibipirunas com

flores amarelas que imitam canários pousados nas copas.

 

Os pássaros estão por toda a parte: bem-te-vis, sanhaços, tico-ticos,

chupins, maritacas em algazarra, sabiás-laranjeira que cantam de madrugada.

Se até eles que podem voar para qualquer sítio escolhem viver neste inferno,

por que não eu?

 

Quero passar o resto dos dias nesta cidade atormentada, desigual, agressiva,

gigantesca, absurda, com museus, livrarias, cadeias, botequins, restaurantes,

orquestras sinfônicas e mais de cem espetáculos teatrais no fim de semana,

ainda que as obrigações e os congestionamentos não me permitam ir a

esses lugares.

 

E, acima de tudo, trabalhar e conviver com a massa crítica de seres

inquietos, diversificados, com histórias de vida e visões do mundo

estranhas às minhas, que construirá a São Paulo dos meus bisnetos.

Deixe um comentário, se quiser.

E