JOSÉ RICARDO TREMURA MORREU EM SANTOS

*(É doce morrer no mar)

   O desembargador aposentado José Ricardo Tremura morreu hoje, 13 de janeiro de 2022, em Santos. O corpo será incinerado às 19h. Este antigo criminalista é um sobrevivente, afastado da Comarca há trinta e poucos anos, mas nunca esquecido do refluir das ondas verdes do mar santista. José Ricardo Tremura foi juiz lá embaixo, promovendo-se a desembargador anos depois e voltando às praias quando deixando a toga, fiel à canção do poeta famoso: “ – Andei por andar andei, e todo caminho deu no mar, andei por andar andei, nas águas de Dona Janaína. A onda do mar leva, a onda do mar traz. Quem vem pra beira da praia, meu bem, não volta nunca mais”. Isso é de Dorival Caymmi. O Leite Fernandes está longe, sim, mas sempre soube de tudo o que acontece por lá, seja nascimento, casamento ou defuntamento (só para rimar). O Paulo Sérgio e o juiz Tremura amadureceram e envelheceram juntos, na orla marítima, cada qual no seu canto, mas com respeito recíproco, um deles muito bom magistrado, o outro ansioso por enfrentar a metrópole perigosa e desconhecida. Há um pleonasmo, dito de vez em quando por literato das esquinas, conspicuamente, com ar absorto: “ – A morte é fatal” é claro, pois o morto só volta na memória…

   Os sobrevivos têm encargos, uma ou outra vantagem e alguma destinação, porque, enquanto não morrem, são às vezes escolhidos para o elogio fúnebre.  Seja como for, José Ricardo Tremura, bom companheiro de antanho, respeitado juiz e cidadão vincado na terra, foi visitar outras passagens. A Ordem dos Advogados lhe publicou o epitáfio. A cidade se entristece. No meio do todo, na relação de causalidade envolvendo o presente e o passado, o Leite Fernandes relembra episódio em que o juiz Tremura e o advogado chegaram a discutir, abraçando-se em seguida perante o povão que fazia fila em frente a uma urna eleitoral, nessa cidade de Santos, o escriba rememora o fato e ainda sente no corpo o amplexo gostoso daquele ilustre funcionário público, sabendo-se que o estreitamento físico entre magistrado e advogado é muito raro. Aquela cena envolveu, também a Ana Maria Babette esposa querida do Paulo Sérgio e que deu, aí na orla marítima, depois de morta, nome a uma pracinha bonita na esquina da Avenida Washington Luís. Foi assim: o Leite Fernandes presidia uma junta receptora de votos. A Babette, na noite anterior, advertira o marido. Veja se, pela primeira vez na vida, você faz as coisas direitinho e cuidadosamente. Traga a urna para casa, mais as cédulas, para não se atrasar amanhã quando os eleitores chegarem. O Paulo Sérgio fez tudo conforme a determinação recebida. Colocou aquilo no porta-malas do automóvel, na garagem. Manhã seguinte, a tempo certo, guiou até o Fórum, para providenciar a recepção dos votos. Já havia um enfileiramento grande no local. Aberto o bagageiro, a urna não estava lá. É simples. O Leite Fernandes, com medo de perder, sempre tinha as coisas em dobro, sem exceção de dois automóveis brancos, mesma marca e mesmo ano. A Babette saíra exatamente com aquele carregado da expectativa da eleição para prefeito de Santos. Estava na feira livre, a Babettinha. Foi um desastre. Polícia Militar, motocicletas, sirenes, invadindo a feira para a recuperação daquele vasilhame importante. Finalmente, a urna chegou, o quarteirão inteiro resmungando. Tremura estava possesso e, na frente do povaréu, resolveu repreender o desastrado presidente da mesa receptora de votos. Não deu certo: “ – Oh doutor Juiz, ou Vossa Excelência se comporta, ou nós dois vamos rolar no chão!”. Tremura olhou, espantado, ia mandar prender o doutor Paulo Sérgio, mas riu gostoso e os dois estreitaram os corpos naquele comportamento afetivo que só os homens bons sabem dar.

   Parece que acabou ali, mas há um segredo que este sobrevivente carrega desde aquela época. Quem sabe, quando nós dois nos encontrarmos, Tremura e eu, no mesmo grau de jurisdição celestial, porque nossos pecados são, certamente, poucos e veniais, eu possa cometer uma indiscrição: o Bispo de Santos era o primeiro a votar. Estava preocupadíssimo, aquele Reverendo. Não soube esconder o papel. O Paulo Sérgio lhe descobriu a vontade, porque viu a cruzeta posta sobre o nome de um dos candidatos. O Leite Fernandes vai carregar o mistério para o túmulo. Sobram a tristeza da partida e a quentura dos ombros fortes de José Ricardo Tremura. E la nave va.

 

 

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