Genealogias de um Crime
Genealogias de um Crime
(1996)
(Geórgia Bajer Fernandes de Freitas Porfírio)
Num clima sombrio, mas não detetivesco, tem lugar a seguinte profecia: “Um dia, um jovem cujo horóscopo previra que seria assassino, matou uma mulher da família de Liu Biau”.
Apesar de impregnada de misticismo, em plano que ultrapassa a dimensão pessoal, a história é baseada em fatos reais. A inspiração foi a vida da psicanalista austríaca Hermine Hellmut von Hug, morta nos anos 20 por seu sobrinho, ele mesmo seu paciente. O enredo é incrementado de forma a retratar disputa entre escolas de psicanálise.
Convencida da índole assassina do sobrinho, a psicanalista dá azo à concretização de um sonho premonitório. O menino é submetido a tratamento e introduzido na prática de jogos dramáticos. “- Agora, você será eu e eu serei você”, sugeriu-lhe a tia.
Jeanne, a psicanalista vivida por Catherine Deneuve, passa a observar minuciosamente comportamentos e reações do sobrinho. Tudo é diariamente registrado, com pensamentos e reflexões a respeito. Segue uma de suas anotações: “Terei tempo para estudar seu comportamento. Poderei acompanhar sua evolução, sua descida ao inferno. Mas é cedo para falar. É preciso que fique inocente e que ignore o que o espera”.
Registros cuidadosos, detalhados, do desenvolvimento físico e mental das crianças tornaram-se comuns no final do século XIX ( em “livros da criança”). Pais tornaram-se responsáveis pelo desenvolvimento normal de suas crianças (“normale Entwicklung”). Técnicas de educação eram construídas a partir de criteriosa observação. Em 1881, Willhelm Preyer publicava na Alemanha um estudo intitulado “Alma da Criança”. Seguiram-se daí, no começo do século XX, vários outros estudos científicos, amplamente divulgados, não apenas pela mídia especializada.
O “livro da criança” de Réné, o sobrinho, foi recheado com as piores notas sobre sua personalidade, com detalhes de maldade e rebeldia e prognóstico bem tendencioso. Decididamente, Réné não era uma “criança ensolarada”. Chamavam-no de “o monstro”.
Jeanne é assassinada. Réné é o inculpado. Os acontecimentos levam a pensar no cumprimento da profecia. No entanto, ele é absolvido. Julgaram-no vítima de jogos e experiências promovidos pela sociedade de psicanalistas da qual a tia participava.
Em outra dimensão, o conflito profetizado tem continuidade no relacionamento entre a advogada Solange, também vivida por Deneuve, e Réné, seu cliente. A advogada vê em Réné seu próprio filho morto em um acidente e com ele se envolve amorosamente. A profecia, então, sem entremeios ou desculpas, se concretiza.
No fundo da história estão transcendência, perenidade e universalidade dos mitos e sonhos. O destino extravasa a vivência pessoal. Repete-se, de tempos em tempos, acusando continuidade numa perspectiva coletiva.
O enredo é complicado. Não há sutilezas nem intensidade nas interpretações, o que dificulta o envolvimento do espectador. Mas o filme é curioso e estranhamente engraçado.
Sob o ponto de vista jurídico, a história é provocante. Suscita questionamentos sobre limites, barreiras impostas juridicamente à permeabilidade do direito a outras ciências. No final das contas, toda colaboração interdisciplinar na determinação da responsabilidade penal só vai até certo ponto. No mundo jurídico não há espaço para incertezas ou questionamentos perenes. É o juiz, já o disse Hassemer, quem dá a última palavra.
O diretor é o chileno exilado na Europa Raoul Ruiz, o mesmo de “O Tempo Redescoberto”, adaptação de Proust para o cinema. No Festival de Berlim (1997), Raoul foi agraciado por sua contribuição artística.
Vale a pena. O final é absurdo. Totalmente inesperado.