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Governo do Irã mata advogado?

* Paulo Sérgio Leite Fernandes
Governo do Irã mata advogado?

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O advogado Mohammad Mostafaei, defensor de Sakineh Mohammadi Ashtiania, condenada à morte por apedrejamento em razão de adultério, no Irã, simplesmente sumiu. Já havia sido preso antes, por defender pessoas que seriam executadas, participando também de movimentos contrários à pena de morte. Enquanto defendia a cliente ameaçada de apedrejamento, o advogado conseguira despertar a atenção mundial. Agora, a própria família dele, constituída pela esposa e cunhado, foi segregada pelas autoridades, a título de pressão para que o defensor se entregasse. Tal comportamento do governo iraniano pode parecer estranho aos brasileiros nascidos após o arrefecimento do golpe de 1964, mas o escriba se lembra, na década de 70, de uma ou outra atividade da Polícia Política no sentido de obrigar o fugitivo a se apresentar, usando-se o artifício de pressionar a mulher (sempre a mulher), pais, irmãos e filhos. O comentarista se lembra muito bem, aliás, de episódio, ainda mantido nos amarelecidos arquivos depositados em algum lugar, contando a história de um ex-soldado integrante de grupo antiguerrilha. O militar, quem sabe purgando culpas vindas do negrume emocional, acentuara que uma criatura pertencente ao miolo de um certo partido político brasileiro era um “cachorrinho”. Para quem não sabe, é o apelido daqueles que traíam o companheiro, infiltrando-se nos grupos revoltosos a mando da repressão. Acontece que o “cachorrinho” não gostou e processou o soldado por injúria e difamação. O antigo paraquedista – era um paraquedista –, processado, explicou que não pretendera injuriar o querelante, mas apenas explicar que a infiltração daquele nas células de esquerda se devia ao fato de as autoridades terem ameaçado o homem de lhe prenderem a mulher e os filhos, praticando violência contra todos.

Já se percebe que a hipótese de o governo iraniano ter o comportamento indicado não é privilégio ou prerrogativa de povos ainda ligados ao fundamentalismo. Isso aconteceu aqui, e não uma vez só. Pensando bem, ainda sucede quando, a mandado de autoridades menos responsáveis, policiais invadem domicílios de investigados, revolvendo roupas-de-cama e gavetas contendo trajes íntimos, enquanto procuram indícios da prática de comportamentos criminosos, fazendo-o em várias oportunidades e perseguindo múltiplos locais suspeitos de arquivamento de provas. Essa atividade de pressionamento indireto é, ocasionalmente, desenvolvida pela própria imprensa. O cronista, mantendo meio século de recordações entre os depósitos neuronais, guarda a história de um homem cuja fotografia saiu na primeira página de matutino importante, sob título, em caixa alta, acusando-o de bandido e peculatário. O filho daquele inculpado, criança ainda, foi perseguido pelos coleguinhas no pátio da escola, no dia seguinte, enquanto os garotos manipulavam aquela página difamatória. A criança fugiu e morreu com a boca cheia de areia do campo de futebol. Tinha a chamada “doença azul”.

Volte-se ao advogado Mohammad: ou está preso, ou fugiu, ou morreu. O Irã não tem tanto mar quanto o Brasil (Mar Cáspio e Golfo Pérsico), mas dispõe do suficiente, é claro, para que as águas recolham corpos jogados de helicópteros, transformando-se em alimento de tubarão. Embora não originais, já fomos praticantes hábeis do esporte. É o que consta. Faz cinquenta anos (na vida do cronista, sempre faz cinquenta anos). Dentro de tal contexto, o defensor da hipotética adúltera pode estar escondido ou ter servido de almoço a predadores marinhos. De qualquer forma, a Anistia Internacional cobra prestação de contas das autoridades iranianas. Se a morte por apedrejamento emociona o mundo inteiro, o narrador vê razão igual ou maior para que todos os advogados do mundo, e juristas em geral, façam igual, embora desconfie da pouca relevância do incidente num momento em que o povo brasileiro e a classe jurídica têm preocupações mais imediatas com a satisfação das emergências domésticas. Feliz ou infelizmente, é assim. O colunista, entretanto, faz a sua parte, acreditando na chegança de um momento em que se redesperte na comunidade a emoção saudável de prestação de ajuda a um companheiro. Se resultado não houver, perdurará sempre a consciência da satisfação de dever ético imposto aos comunheiros.

Advogado: proteste contra o apedrejamento da iraniana e a perseguição a seu defensor. Assine a petição pelo site http://freesakineh.org/ ou http://www.avaaz.org/po/stop_stoning

* Advogado criminalista em São Paulo há cinquenta e um anos

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