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Psicose do medo e Prescrição Retroativa em Direito Penal

* Paulo Sérgio Leite Fernandes
Psicose do medo
e
Prescrição Retroativa em Direito Penal


Li em algum lugar, não me animando a pesquisar onde, que o medo incha como um almoço farto ou um vinho de má procedência, tomado à noite antes de dormir. Na verdade, o apavoramento da comunidade frente aos males do mundo moderno, sem exceção da violência, produz uma série de consequências geradas por pressupostos fictícios. Assim, o cidadão aplaude qualquer iniciativa no sentido de agravamento das penas voltadas a crimes mas também à facilitação ao trâmite de processos concernentes à efetividade da punição. Alguns parlamentares, de seu lado, captam esse movimento psicológico subjacente na comunidade, transformando-o em dispositivos colocados na própria lei penal. Parece que isso chama votos, pois a cidadania, na convivência externa, tem alguns princípios fundamentais:

a)    – Proteção à vida e à saúde;

b)    – Manutenção da liberdade;

c)    – Repulsa a ameaças à honra e boa fama;

d)    – Resguardo do patrimônio.

Alguns invertem a importância do regramento, defendendo seus dinheiros e bens com o sacrifício da própria vida, se necessário for. Dentro de tal contexto, é razoável até que o caminhante se exponha a disparos da arma do bandido, morrendo para preservar as moedas tilintantes na algibeira. Entretanto, a graduação das geratrizes do aplauso parece ser aquela posta no enunciado aqui referido.

Sem perda de ligação com o tema: os tempos modernos mostram o aparelhamento do próprio Estado na extorsão praticada contra o burguês, assemelhadamente ao que se fazia, desde épocas vetustas, quando os lictores se encarregavam da aferição dos tributos a serem prestados a César. Agora, como antigamente, o Estado, minotauro sem cara, toma e não devolve, a exemplo do que ocorre, no Brasil hodierno, com os precatórios alimentares, em que velhos encarquilhados e moços mutilados aguardam, em mendicância, que seus dinheiros sejam depositados nos bancos oficiais por governos absolutamente selvagens na retenção de quantia destinada, no fim das contas, à mesa dos desprotegidos. O povo, dentro daquilo que se chama de inconsciente coletivo, é tragicamente curioso, pois louva a atividade punitiva e não tem condição de reivindicar a outorga de direitos que, na verdade, são fundamentais. No entremeio dessa conduta de endeusamento do próprio Estado, o populacho se engoda enquanto, meritoriamente, bate palmas à ficção advinda de legislação extremada no acréscimo da possibilidade de punição dos infratores. Isso acontece, por exemplo, com a lei 12.234/2010, recentíssima, já se vê, extinguindo a possibilidade da chamada prescrição retroativa a ser computada, até então, a partir da data do cometimento do fato até aquela do oferecimento da denúncia.

O projeto de lei referido, originador da lei em vigência, teve como justificativa principal a impunidade resultante da demora na apuração da infração penal e seus possíveis autores, isso na fase inquisitorial. Na medida em que a extinção da punibilidade, por via retroativa, também se aplicava a tal período, poderia haver, em tese, impossibilidade de castigar, mais tarde, o ofensor. O silogismo é nítido. A maior parte dos tipos previstos no Código Penal – aqueles mesmos que sacodem a opinião pública – tem punição grave, com prescrição virtual – mesmo a virtual – avantajada. O prazo prescricional a ser contado, então, dificilmente é inferior a quatro anos, exceção feita a menores de vinte e um e maiores de setenta anos à data do crime. Assim, a prescrição que a lei procura evitar importaria em deixar-se o inquérito bailando durante anos, da Polícia ao Poder Judiciário e vice-versa. Agora, com o vigoramento da lei nova, consuma-se uma situação absolutamente felliniana, pois a autoridade policial pode restar com a investigação nas gavetas durante todo o tempo intercorrente entre o fato e a prescrição abstrata, significando, então, na rotina forense, a pasmaceira de oito, doze ou até vinte anos, submetendo-se o indiciado, consequentemente, a um suplício inenarrável. O eminente autor do projeto, Deputado Biscaia, vem do berço reservado ao Ministério Público e talvez, sabendo-o ou sem o saber, venha a produzir efeitos indiretos e pouco sopesados agora. É preferível admitir que o Congresso Nacional tenha deixado de medir algumas circunstâncias muito curiosas, entrelaçando sofisticadamente a Polícia e o “Parquet”. A explicação é simples: o Ministério Público tem usado, para fins persecutórios, o inquérito civil público e a denominada investigação preparatória, esta de cunho criminal, passando de uma alternativa à outra de acordo com as necessidades de momento. Assim agindo, a nobre Instituição se apossa de atribuições deferidas à própria Polícia Judiciária, o que não a impede de remeter os autos de procedimento à autoridade policial, quando a tanto houver conveniência. Faltando melhor expressão para mencionada atividade, poder-se-ia acoimá-la de “troca-troca”, prevalecendo-se na investigação, então, a possibilidade de elastério dos prazos anteriormente atinentes à prescrição retroativa. Se o eminente autor do projeto tivesse – e deve ter – sutileza adequada a refletir nessa sibilina relação de causalidade, maus ventos o tragam, porque terá permitido a manipulação soturna do vai-e-vem. A questão, no frigir dos ovos, há de ser submetida ao Poder Judiciário, resolvendo-se, como sempre, a prazo médio na Suprema Corte. É bom dizer, a título de fecho, que a lei nova não pode abranger situações já ultimadas, existindo então uma zona em que a aplicabilidade da prescrição retroativa contada do fato ao recebimento da denúncia será uma realidade absoluta. O instituto em questão tem vestimento no Direito Penal Material. Justifique-se o título “Psicose do Medo”. A população, enganada pelos motivos expostos no projeto, tece loas à restrição ao transcurso da prescrição retroativa delimitada na lei nova. Começará a criticar a legislação, certamente, ao verificar que o diploma legal sob análise será um prêmio, sim, à negligência da autoridade na apuração das hipóteses de infração penal. Em síntese, pior a emenda que o soneto.

* Advogado criminalista em São Paulo há cinquenta e um anos.

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