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Vinícius embaixador – Hora Íntima

* Paulo Sérgio Leite Fernandes
Vinícius embaixador
Hora Íntima


Costumo dizer que sou um sobrevivente do negrume ditatorial que esfumaçou o Brasil a partir de 1° de abril de 1964, eu e uns poucos advogados, porque outros, mais antigos talvez, já se foram, deixando boas lembranças do combate que, a duras penas, ainda está no caminho da redemocratização do país. O sentido dubitativo da frase se justifica, pois há ainda sérios indícios de um Estado autoritário, em metamorfose certamente, mas evidenciado, por exemplo, no cruzamento eletrônico de informações transformando o cidadão num animal transparente, impedido de manter resquícios mínimos de privacidade. Dir-se-ia haver, então, uma sofisticação de domínio estatal, agravando-se o comportamento na medida em que é acompanhado de atividade midiática servindo de anestésico eficaz. O cidadão, assim tratado, fica, em maioria, adormecido, não percebendo que seu domicílio, sua intimidade, seus segredos ou mistérios foram plenamente desvestidos pelo Poder. Mas isto não vem ao caso. Firmado na sobrevivência ainda máscula, posso dizer, a exemplo de outros poucos defensores, entre os quais relembro José Carlos Dias e, num sentido mais agressivo, Idival Pivetta, que, entre os ditadores do passado, Geisel e Médici se põem como os piores. Voejando por ali, independentemente da ordem cronológica, estão Castelo Branco e Costa e Silva, um identificando destacada rodovia, aquele outro dando nome ao feio “Minhocão” encimando São Paulo, não sendo necessário rememorar que a África do Sul está passando a vassoura nos logradouros públicos contendo a nominação dos colonizadores ingleses. O brasileiro é muito sentimental. Tem preferência, às vezes, até pelos vampiros. Vale a pena, então, uma estrofe, aqui reproduzida com imprecisão, de música composta por Paulo Vanzolini: muito cidadão não consegue tirar o veneno do seu sangue. Fica lá o viaduto, restando igualmente a Dutra, uma das mais importantes rodovias que o Brasil tem, beliscando inexoravelmente a memória do passante.

A introdução, aparentemente, se perde no vazio. Não é assim. Falei em Costa e Silva, o mesmo que exonerou Vinícius de Moraes da diplomacia brasileira, fazendo-o com seco bilhete referindo a “vagabundagem” de um dos maiores poetas que o universo já produziu, não o Brasil, insisto, mas o mundo todo. A arte de construir sem fazer nada é privilégio do gênio. Lembro de cancioneiros diferenciados que ficavam, com Vinícius de Moraes, simplesmente olhando a Lagoa do Abaeté, jogando conversa fora durante um dia inteiro. De lá saiu, no dedilhar e na voz de Dorival Caymmi, a canção que é o hino da Bahia, “A lua se namorando nas águas do Abaeté, a lagoa linda é…”

Dentro do contexto, reunindo agora duas vertentes do Brasil (Costa e Silva e Luiz Inácio), devo referir a antinomia: aquele aposentou compulsoriamente o poeta-diplomata, este, em homenagem póstuma, transformou o defunto em embaixador. Tocante a Luiz Inácio, não sei se a ideia foi dele ou se veio de um “Vidoc” qualquer. Pode ter surgido da mente de um Richelieu moderno mas, devo dizer, o metalúrgico acertou um flecha no meu coração. Isto não significa que vá votar em Dilma Rousseff, nem no Serra opositor. Preferiria Plínio Arruda Sampaio se não fosse assemelhado a um incrível brancaleone sacolejando no areal a armadura enferrujada. Referindo-me ainda ao embaixador Vinícius de Moraes, o metalúrgico fez muito bem. Não creio que conheça as poesias do grande menestrel mas, seguramente, nos transtornos emocionais aforando qualquer ser humano, o Presidente teria escutado uma ou outra canção de amor, o “Soneto da Fidelidade”, mesmo sendo Vinícius um pluriapto, mantendo oito ou nove paixões (as conhecidas). Insistindo no fato de não ter transformado Vinícius de Moraes em cabo eleitoral de Dilma Rouseff, vale aqui a poesia mais se incrusta na alma dos trovadores:

A Hora Íntima

Quem pagará o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
Quem, dentre amigos, tão amigo
Para estar no caixão comigo?
Quem, em meio ao funeral
Dirá de mim: — Nunca fez mal…
Quem, bêbado, chorará em voz alta
De não me ter trazido nada?
Quem virá despetalar pétalas
No meu túmulo de poeta?
Quem jogará timidamente
Na terra um grão de semente?
Quem elevará o olhar covarde
Até a estrela da tarde?
Quem me dirá palavras mágicas
Capazes de empalidecer o mármore?
Quem, oculta em véus escuros
Se crucificará nos muros?
Quem, macerada de desgosto
Sorrirá: — Rei morto, rei posto…
Quantas, debruçadas sobre o báratro
Sentirão as dores do parto?
Qual a que, branca de receio
Tocará o botão do seio?
Quem, louca, se jogará de bruços
A soluçar tantos soluços
Que há de despertar receios?
Quantos, os maxilares contraídos
O sangue a pulsar nas cicatrizes
Dirão: — Foi um doido amigo…
Quem, criança, olhando a terra
Ao ver movimentar-se um verme
Observará um ar de critério?
Quem, em circunstância oficial
Há de propor meu pedestal?
Quais os que, vindos da montanha
Terão circunspecção tamanha
Que eu hei de rir branco de cal?
Qual a que, o rosto sulcado de vento
Lançara um punhado de sal
Na minha cova de cimento?
Quem cantará canções de amigo
No dia do meu funeral?
Qual a que não estará presente
Por motivo circunstancial?
Quem cravará no seio duro
Uma lâmina enferrujada?
Quem, em seu verbo inconsútil
Há de orar: — Deus o tenha em sua guarda.
Qual o amigo que a sós consigo
Pensará: — Não há de ser nada…
Quem será a estranha figura
A um tronco de árvore encostada
Com um olhar frio e um ar de dúvida?
Quem se abraçará comigo
Que terá de ser arrancada?
Quem vai pagar o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?

* Advogado criminalista em São Paulo há cinquenta e um anos.

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