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Ortotanásia (ou o direito de morrer)

* Paulo Sérgio Leite Fernandes
Ortotanásia
(ou o direito de morrer)


Cinquenta anos atrás (meus relatos sempre se referem a cinquenta anos passados) havia num hospital uma criatura imensamente qualificada para continuar vivendo. Entretanto, sofria terrivelmente em razão de doença incurável. Aquela pessoa, extremamente minuciosa e metódica, se dera ao trabalho, enquanto estudava e lecionava, de redigir a mão, numa letrinha redonda e muito legível, um dicionário da obra de Euclides da Cunha. Referia-se aos “Sertões”. Cuidava-se de obra não terminada, mas alguém mandara encadernar o texto, transformando-o em alentado volume. Uma curiosidade dramática: o autor do dicionário escrevia com a mão esquerda, pois perdera o braço direito, acostumando-se então a usar o outro lado do cérebro. Aquela inefável pessoa estava a morrer, mas por uma razão qualquer não partia. Tinha o clássico par de tubos nas narinas e recebia a medicação adequada àqueles doentes postos em condições análogas. Numa certa madrugada, então, o moribundo decidiu fazer a última viagem, ou decidiram por ele. Vem-me o fato à lembrança enquanto leio excelente obra de doutrina sob o título “A Ortotanásia: uma análise a respeito do direito de morrer com dignidade”, artigo produzido por Gisele de Lourdes Friso, especialista em Direito do Consumidor pela UniFMU, instituição paulista colocada na tradição do bom ensino do direito.

Continuando a crônica, revejo o agonizante. Encontraram-no na manhãzinha, já morto. Os dutos de oxigênio pendiam no chão, ao lado da cama. Com certeza ele os tirara com a mão sobrante…

O estudo da doutora Gisele de Lourdes Friso absorve com imensa vantagem todos os aspectos legais e éticos atinentes à ortotanásia e à eutanásia, estabelecendo diferenças entre as duas. Na primeira, os métodos usados por médicos e enfermagem são paliativos, não se buscando prolongamento inútil da vida do paciente; na segunda, existe cooperação ou auxílio eficaz para a consequência morte. O Conselho Federal de Medicina dispôs sobre a questão, nadando perigosamente em torno de autorizações que não se animou a explicitar (v. Ponto Final  “Novo Código de Ética Médica e a importância do dedo polegar”). Recordo-me, respeitante ao assunto, de conspícuo, competente e rude especialista que aconselhou o paciente e a família, observando aliás preceito moral expresso na deontologia, a não gastarem quantias exorbitantes com tratamentos extravagantes, afirmando a todos que o enfermo morreria em noventa dias. Os consulentes, indignados, procuraram outros facultativos, mais otimistas por certo, queixando-se do médico às autoridades competentes. O doente morreu noventa e dois dias depois, apesar de posto na “churrasqueira” (expressão usada na prática para identificar radioterapia insistente). É que os diplomas referentes à dogmática médica proíbem os profissionais de mentir. Não há meias-verdades. As coisas são ou não são…

Correspondentemente à ortotanásia, é praticada desde priscas eras, com imensa discrição, é certo, mas ninguém se anime a refutar a afirmativa. Amenizando o texto, vale referência a Vinícius de Moraes, sofisticando sobre a grande bruxa: “ – Ela virá e abrirá a porta como uma velha amante, sem saber que é a minha mais nova namorada”. Sofismando sobre o tema, vem à memória do velho marinheiro um famoso filme de “far west”, aquele em que dois vaqueiros lutam contra os comanches, ou apaches, na conquista de terras selvagens. Os personagens eram Burt Lancaster e Kirk Douglas. Kirk leva um flechada. Burt o arrasta para trás de uma rocha e pretende ajudar o companheiro. Kirk pede um cigarro e um gole de whisky. Burt tira de uma bolsinha um pouco de fumo, enrola aquilo numa “palhinha” daquelas que nossos avós compravam no armazém da esquina, acende o fósforo no dedo polegar (nunca soube como se faz isso), dá uma tragada para atiçar a brasa e entrega a cigarrilha ao ferido, não sem antes permitir que Kirk tome um gole. Uma baforada, a fumaça sai pelas narinas, e lá se foi Kirk, com seus pecados e as marcas no revólver. O grande problema, hoje, é que em hospital não se permite bebida alcoólica e ali, mais que em qualquer outro lugar, o fumo é proibido. De qualquer forma, os penalistas de ocasião precisariam refletir sobre se dar de beber whisky aos quase defuntos, deixando-os também sugar um cigarro constituem tipificação de ortotanásia ou eutanásia. Eis a questão.

* Advogado criminalista em São Paulo há cinquenta e um anos.

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