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Jornalismo livre no Irã

* Paulo Sérgio Leite Fernandes
Jornalismo livre no Irã


Os deuses e profetas não devem ter relação alguma com liberdade de imprensa pois, final das contas, as onze mil  virgens hão de constituir, seguramente, problema muito mais sério a desbastar com tanto pretendente à espera, alguns levando a determinação ao ponto de se transformarem em bombas ambulantes. O assunto, entretanto, gera reflexões extremamente curiosas sobre as características componentes do inconsciente coletivo segmentado nas diversas regiões do globo terrestre. Exemplos edificantes: na Holanda, o consumo de drogas, mesmo aquelas pesadas, é livre, respondendo o Estado pelo abrigamento dos desesperados deitados às vezes nas calçadas das vias públicas. Não há movimento jornalístico contrário àquilo. A opção já se estruturou no dia-a-dia da comunidade. Olho o meu cão sharpei (o Baltazar, estranhamente parecido comigo) e me lembro de que, na China, espécimes daquele animal eram penduradas em ganchos nos açougues, constituindo iguaria apreciada por muitos, valendo dizer que em São Paulo, meses atrás, foram autuados estabelecimentos de origem coreana enquanto mantinham carne de cães e gatos para venda e degustação.  O presidente da África do Sul tem quatro ou mais mulheres, fora as de ocasião porque ele diz que não é de ferro e às vezes cede a tentações. Aqui, embora o casamento possa ser desfeito no dia seguinte, bigamia ainda é crime grave, coisa muito esquisita aliás, frente à acidentalidade deixada pela nova lei do divórcio. Muitas outras hipóteses de diversidade poderiam ser citadas. Um leitor do meu “site” comentou, recentemente, a existência de mais de trinta países mantendo a pena de morte, com aval dos Estados Unidos da América do Norte, constituindo extravagância, então, a preocupação universal com a infeliz iraniana que aguarda apredrejamento.

Volte-se à liberdade de imprensa: jornal oficial no Irã, respeitadíssimo por certo segundo o “Estadão”, edição de 02/09/2010, página A22, continua criticando impiedosamente a primeira-dama   francesa que integrou movimento universal em favor de Sakineh, a lapidável. Os jornalistas brasileiros se aquietam, firmados no princípio da liberdade de opinião, respeitando o ponto de vista dos colegas iranianos. Em resumo, se coreanos gostam de carne de cachorro, próceres africanos praticam a “ménage a quatre”, orientais devoram formigas fritas e holandeses carregam nos braços, contritos, seus viciados, não se pode estranhar que jornais iranianos se estejam aprestando a fotografar ou filmar o crânio dilacerado da hipotética adúltera, mostrando os restos, depois, na página de rosto dos matutinos ou nos programas televisivos da TV Irã. Vi, certa vez, um noticiário desses. Também contam piadas. A gente não entende, mas como eles riem, deve ser engraçado.

Perceba-se bem, não estou a criticar uma ou outra raça, mas apenas ressaltando alguns costumes ditos esquisitos, sem a necessária autocrítica, sendo bom argumentar, certamente, que há excelentes chefes de cozinha, em São Paulo, especialistas na preparação do “escargot” (helix pomatia linné), constando tratar-se de uma corruptela ou evolução da lesma. Não sou “gourmet”. Comer, para mim, é suprimento de combustível. Nos meus momentos de desânimo com os humanos, imagino-me como um cavalo. É ruminante. Seus excrementos, quando secam, servem às lareiras e não têm cheiro ruim. Ou então penso numa criatura construída em brilhante aço inoxidável. A água cai ali e desliza sem deixar uma só nódoa. Retornando ao “escargot”, vi um deles vivo, carregando a casinhola nas costas. Tem dois olhinhos protuberantes e deslizam sobre uma substância gelatinosa quase translúcida. Li numa seção do mesmo “O Estado de São Paulo”, dedicada à ciência, que especialistas estão a tentar a fabricação de uma cola à base daquilo, na medida em que existem moluscos agarrados às rochas com aderência eficaz a resistirem a qualquer tsunami.

A crônica é meio confusa mas não é tanto assim. Comemos cachorros, gatos, formigas, lesmas, alguns devoram mais de uma mulher ao mesmo tempo, apedrejamos o crânio de umas e outras, reagimos aos trezentos e noventa e oito dias de censura e, paralelamente, deixamos de combater os jornalistas que estão a aplaudir, no Irã, a possível lapidação de Sakineh, tudo em nome da liberdade de imprensa. Decididamente estão todos doidos, desde o chefe de cozinha premiado aos políticos que não desprezam, à mesa, uma boa lesma gratinada boiando no creme de leite. Como dizia Édith Piaf em bom francês “Ça va”. Eis aí.

* Advogado criminalista em São Paulo há cinquenta e um anos.

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