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Apedrejamento de galinhas é crime

* Paulo Sérgio Leite Fernandes
Apedrejamento de galinhas é crime


Nossos tribunais têm às vezes problemas curiosos a enfrentar. Já se viu decisão admitindo legítima defesa contra um galináceo. Não é mentira. Se houver desafio, a ementa será localizada e posta a público. O galo, provavelmente, era mesmo de briga, daqueles que têm ponteiras de aço no esporão. Não deve ter gostado de alguma ameaça à sua integridade corporal. A propósito, leu-se outro dia, num livro correspondente a comportamento dos chamados animais inferiores, que o namoro entre os galináceos (Gallus gallus domesticus) é realizado assemelhadamente à disputa entre os humanos. Os pretendentes se põem a cantar no terreiro. Aquele que resistir por mais tempo é o vencedor e leva o prêmio ao qual, diga-se, tem direito, exceção feita ao sedutor esperto que fica esperando o desânimo dos outros. Deve haver bicho que faça assim. Isso imita repetidamente as artes de sedução na humanidade. Aqui, ocasionalmente, chega-se aos crimes passionais. Vale a pena lembrar filme de arte, dirigido por um desses diretores famosos, em que uma jovem comparece a festividade ao ar livre. Ali, num espaço adequado, há uma dança em que todos se dão os braços e pulam constantemente. Uns e outros saem ou entram na roda. A moça é incansável. Há dois ou três que querem chegança. Dançam também. Não desistem mas, sucessivamente, desmaiam e morrem. Um deles consegue manter-se pulando. É o vitorioso e, portanto, o escolhido. Crocodilos ou jacarés também bailam enquanto tentam seduzir as fêmeas. Oferecem-lhes o papo, ou a parte inferior do pescoço, aquela mesma extremamente vulnerável, porque não provida de escamas. A fêmea pode, obviamente, mandar o macho desta para a melhor, dilacerando-lhe o local menos encouraçado. O louva-deus, na atividade sexual, é morto pela consorte. Perde literalmente a cabeça. Existe, entre os aracnídeos, a viúva negra, especializada em injetar veneno no acasalado, e assim por diante.

Embora parecendo não ter a mínima relação com o assunto, é bom acompanhar acórdão prolatado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, correspondendo a “briga de galos”. Havia, no processo, um rinhadeiro e outros instrumentos permitindo disputa e apostamento em um ou outro lutador, a exemplo do famosíssima ação penal ainda em tramitação envolvendo eminente publicitário ligado ao Planalto. Cuidava-se, ali, de crueldade e maus-tratos a animais. Quem já viu conflito dessa natureza pode estabelecer ligação com os antigos gladiadores do circo romano. As brigas vão até a morte ou, parando antes, mutilam-se os animais. Na hipótese vertente, dez galos de briga estavam feridos, provocando reação da Associação Rio-Grandense de Proteção aos Animais. Foram apreendidos uma serrinha de cortar esporas, oito esporas de aço, quatro esporas de plástico, caneleiras, quatro seringas com agulha, rolo de cordão para sutura e outros objetos. Provavelmente, as seringas continham estimulantes, à moda dos anabolizantes usados para aumento da musculatura entre praticantes de artes marciais. Os animais eram submetidos a constantes rinhas, caracterizando-se então crime previsto no artigo 32 da lei 9605/1998: “Praticar ato de abusos, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos, nativos ou exóticos”. O acusado afirmou que o material pertencia a um namorado da filha de um colega.

O réu foi condenado, por votação unânime, à pena de três meses de detenção.

Isso lembra, retroagindo-se à infância, a visualização de conduta das velhas avós, antes dos almoços comunitários nas “Minas Gerais”: havia avoengas especializadas em matar as frangas torcendo-lhes o pescoço num movimento rápido do resto do corpo. A prática era incruenta. Havia outras que decepavam o animal sem a menor cerimônia. As duas manobras constituíam comportamentos inesquecíveis.

As galinhas, é claro, não sabiam que seriam sacrificadas porque, se soubessem, as velhas senhoras poderiam ser, eventualmente, processadas por maus-tratos. Hoje em dia o “abate humanitário” é a regra. Tocante ao gado bovino, o Brasil já foi censurado na exportação por não seguir as normas atinentes à espécie. Viu-se na imprensa, há pouco, debate sobre experiências nas cobaias de laboratório com recomendações de menor sofrimento possível. No fim de tudo, o assunto é extremamente sofisticado. Certa vez, diferenciado artista plástico chegou ao extremo de não permitir que insetos fossem pisoteados ou exterminados na sua chácara. Segundo argumentava, tinham família e precisavam retornar às tocas, ou ninhos.

Existem em alguns institutos especializados formigueiros artificiais mantidos dentro de tubos transparentes. A organização daqueles insetos é admirável. Um matutino de São Paulo comentou poucos dias atrás que há, na coordenação de tais redutos, características ofensivas, eventualmente, ao direito de liberdade, constando que as grandes formigas vermelhas da Amazônia praticam invasão de formigueiros mantidos pelas formigas pretas, mas não as matando. Escravizam-nas e as encarregam de proteger os ovos. As prisioneiras assim fazem, morrendo em defesa das pupas.

Já se percebe que os tribunais, ocasionalmente, são levados a incursões na zoologia, indo do planalto central aos costumes dos insetos menores, envolvendo-se nisso importantes criaturas. No fim, a própria vida se transforma numa tragicomédia, sem que se esqueça minudência curiosíssima enlaçando a galinha decapitada e a iraniana Sakineh condenada à morte por apedrejamento. O Irã suspendeu a lapidação da condenada. Vai morrer na forca. Tocante aos galináceos preparados para o caçulê, a decapitação ou torção do pescoço iguala uns à outra, pois o sacrifício é assemelhado. Não há maus-tratos. A iraniana morre impactantemente e os frangos também. Suspensa a lapidação, não há mais quem fale nisso. Referentemente às galinhas, dizem que as antigas matriarcas fazem excelentes condimentos. “E La nave va”.

Segue o acórdão (Recurso crime 71002601292). Há de ser útil aos penalistas de Brasília.

* Advogado criminalista em São Paulo há cinquenta e um anos.

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