Home » Ponto Final » Desmerecendo a Bienal de São Paulo (Ou “O pintor é bom, os modelos são ruins”)

Desmerecendo a Bienal de São Paulo (Ou “O pintor é bom, os modelos são ruins”)

* Paulo Sérgio Leite Fernandes
Desmerecendo a Bienal de São Paulo
(Ou “O pintor é bom, os modelos são ruins”)

___________________________________________________________________________________

Acompanhei ao vivo as bienais de Veneza até quatro anos atrás. Há quem não perca o famosíssimo campeonato de tênis em Wimbledon, preparando a viagem com muita antecedência. Eu me sentava, aos oito anos de idade, num banquinho ao lado de minha mãe, vendo-a pintar a óleo e na porcelana. Daquela época, talvez, comecei a gostar de pintura e desenho, embora nunca permitindo que alguém me ensinasse a arte, temeroso de me tornar um aprendiz medíocre. Transformei-me num desenhador extravagante e sem qualquer técnica, como o mestre-sala que, não achando fantasia para o carnaval, veste a roupa encontrada no armário e sai alegre a sambar com a porta-bandeira, esta sim toda paramentada, a exemplo da própria vida. Servem as reflexões para dizer que a Veneza dos Doges exibia às vezes pintores absolutamente anômalos. Houve um, aliás, oferecendo tela totalmente branca. Argumento maior: as cores e os motivos estariam no olhar do visitante. É bom recordar, sem analogia, Michel Basquiat, antes pichador de muros, depois famoso nos meios artísticos em geral. Morreu cedo, como Jimmy Hendrix, que se foi aos vinte e sete, ambos envenenados por mefíticas drogas modernas. Pelo sim pelo não, é bom dizer que conheço alguma coisa de pintura, a partir da admiração pela primeira cena rupestre deixada em tempos imemoriais numa caverna da França, representando um bisão e um guerreiro, a fera trespassada por uma lança, constatando-se que o caçador, nu, tinha a masculinidade devidamente enrijecida. Coisas do mundo, evidentemente. Os endocrinologistas modernos explicariam isso a poder da alquimia das endorfinas, adrenalinas e todo o contexto glandular terminando em “ina”. Para nosso ancestral, era também um prazer, agregado à consciência do risco.

Voltando-se às bienais, a OAB paulista oficiou aos curadores da Bienal de São Paulo, protestando contra a aceitação ou escolha de obra de um pernambucano apelidado Gil Vicente (quem sabe é este o nome do pintor), consistente em desenhos a carvão do ex-presidente Fernando I, a quem chamo há muito tempo de Fernando I e Único, Rei do Brasil, ao lado de Lula, o metalúrgico, existindo alguém, formando o trio, com faca na mão, no claro intuito de agredi-los. Meu dileto amigo Luiz Flávio Borges D’urso, presidente da Seccional paulista da Ordem dos Advogados, acentua tratar-se a obra de apologia de crime, justificando portanto repulsa. Os curadores da Bienal reagem: a arte inadmite censura. Independentemente das virtudes do artista, e deve tê-las, pois se não as tivesse não teria sido convidado, Fernando I e Único, Rei do Brasil, e Luiz Inácio, o metalúrgico, não merecem tal distinção. Teçam-se algumas considerações sobre o assunto, jogando-se às favas a ordem cronológica: Ronald Reagan foi vítima de homicídio tentado. Os dois Kennedy morreram assassinados. Um terceiro membro do clã naufragou dentro do automóvel numa lagoa qualquer. A moça morreu. Ele nadou até a margem e se penitenciou daquilo pelo resto da vida. Lincoln, casado com Mary, morreu com um tiro na nuca, desferido por Booth durante um ato de peça teatral. Afirma-se que Mary era caprichosa, mas isso não vem ao caso. O Papa João Paulo II quase foi entrevistar-se antes do tempo com o Criador, de quem, aliás, deve ser amigo. Será canonizado. Gandhi morreu apunhalado enquanto andava no meio da multidão. Houve no Brasil atentados contra líderes máximos. Não se fale de outros países igualmente submetidos a tragédias assemelhadas, bastando elencar, para que não se perca o escorço histórico, Caio Júlio César, morto por Brutus em priscas eras. Não se tem, entretanto, notícia de divulgação anterior dos propósitos daqueles homicidas. Até Bakunin, num atentado frustro ao Czar Alexandre II da Rússia, escondia a bomba sob o casaco. Tocante a Gil Vicente (não o autêntico, mas este), não se tenha ideia preconcebida quanto a possíveis intenções malévolas do expositor. Ou o fez por não gostar de Fernando I e Único e do metalúrgico, ou por ter pesadelo com eles, ou por bazófia, ou para aparecer. A qualidade da obra é excelente. Os retratados têm poucos atrativos. A dupla, de seu lado, há de ficar muito satisfeita com a distinção. Afinal, suas imagens estarão entronizadas numa galeria da mais importante mostra do Brasil, não bastando a permanente projeção na mídia. O episódio é grandiloquente, servindo à paranoia do desequilibrado e assustando o homem comum. Como nenhum dos dois é medíocre, não lhes serve a definição feita por José Ingenieros. Sobra-lhes a diferenciação psíquica. Não deixa de ser uma qualidade positiva.

Aqui no meu canto, mantida a parelha com a Bienal, será a vez primeira em que não irei lá. Já me bastam os jornais…

* Advogado criminalista em São Paulo há cinquenta e um anos

Deixe um comentário, se quiser.

E