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Os mineiros do Chile e uma santa salvação – Ou “Que venha a Consuelo”

Os mineiros do Chile e uma santa salvação
Ou “Que venha a Consuelo”

Gatopardo

O cilindro de aço que veste meu corpo, aprisionando ao mesmo tempo meus poucos pecados e minha alma ensandecida, sobe devagar dentro daquele túnel irregular aberto lá em cima, a setecentos metros de distância, por sábias e obstinadas criaturas que se recusaram a dormir e sonhar comigo no subsolo fedorento, assemelhando-me a uma ratazana enroscando o corpo nas escaras da caverna em que os fados me puseram. Aperto-me nas redonduras interiores daquela cápsula extravagante. Ao lado dos meus pés há tubos de oxigênio. Um rádio-telefone foi pendurado a meia porção. Uso óculos escuros, roupa especial e capacete. Meu coração bate mais depressa. Aqueles que monitoram minha vida devem estar pedindo, como os antigos médicos:“– Diga trinta e três, diga trinta e três, diga trinta e três –”. Talvez não saibam que a expressão, em castelhano ou em português, não tem o mesmo significado da origem francesa, ou seja, “trente trois”, esta sim podendo exemplificar se os pulmões estão ou não em bom estado, pois o “trois” repercute dentro daquele órgão duplo de respiração, projetando-se cavernoso se houver lesão qualquer no aparelho respiratório. Eu também digo “trinta e três”, relembrando, enquanto enrascado nas paredes daquele quase túmulo, a vida inteira na superfície. Curiosamente, penso na minha primeira infância, não no Chile, mas na Bolívia sim, donde saí ainda jovem para tentar a sorte adiante, eu que não queria palmilhar campos de coca ou mastigar aquelas folhas milagrosas que mitigavam o cansaço dos camponeses. A ogiva, imersa na profunda escuridão do contorno terroso, balança bastante, ameaçando parar de repente. Tenho ao lado uma espécie de alavanca a separar aquele acessório em duas partes. Em caso de acidente, meu pedaço ficaria livre para descer e subir outra vez, se a tanto pudesse chegar. Deram-me uns líquidos de sabor esquisito antes de me isolarem no invólucro. Aquilo não me fez bem. Tenho vontade de ir ao banheiro, mas não fiquei só na vontade. Confesso, muito envergonhado, que minhas entranhas se esvaziaram no medo de ficar entalado para sempre naquele ataúde de ocasião. Não sou religioso, mas até os positivistas convictos chamam por Nossa Senhora na hora da morte, se lúcidos estiverem. Ela é mãe de Deus. Os bolivianos têm muitas imagens da sagrada matrona, conformando-a cada qual à sua moda. Do meu lado, sempre penso na santa com um “poncho” colorido e fisionomia à maneira das bolivianas em geral: cabelos pretos, lisos e longos, nariz forte, uma boca polpuda e olhos escuros como dois carvões. Não sei bem se o rosto é o da Madonna ou de alguma jovem bonita que tentei namorar e não consegui, mas naqueles quase quinze minutos de sacolejamento, ou penso na santa e me persigno diante dela ou me desespero e tento abrir a porta de aço axadrezado, morrendo desastradamente na tentativa desesperada. Só não faço isso porque penso nos outros trinta e dois, ou naqueles que ficam no subterrâneo esperando estar livre o caminho da ressurreição. Sei que o presidente da Bolívia tomou um avião e veio para me enxergar ressurgindo dos infernos. É bom pra ele, para a Bolívia, para o Chile e para mim, porque prometeu emprego diferente daquele que tive até sessenta dias atrás, alguma coisa que não me encha as narinas do enxofre e detritos das rochas dilaceradas pela ânsia de se encontrar o metal dourado que faz a felicidade dos patrões, ou mesmo o cobre ainda utilizado em muitas artimanhas industriais. Além de Evo, só meus companheiros me aguardam. Minha família ficou não sei onde e nem sei se fiz algum filho por aí.

Enquanto reflito nisso tudo até para manter meu já devastado equilíbrio, este charuto malcheiroso sacode muito forte. Deu uma ralada num pedaço de rocha a servir de freio à minha vontade de não morrer. Sinto os odores do meu corpo, da graxa lubrificante dos rolamentos externos e daquela meio-doce meio-amarga emanação vinda das paredes postas a centímetros do meu nariz. Sinto um suor frio descendo pela testa. Não tenho como enxugá-lo. Não me deram lenços ou toalhas. Os panos não cabiam e, também, poderiam gerar um acidente qualquer. Não posso movimentar muito os braços e não quero mexer os pés dentro do diminuto círculo. Na minha fantasia, receio que o fundo se desloque, caindo meu corpo pelo vazio até o chão, assustando os colegas ansiosos. De repente, no meio da parafernália, minha vida toda passou por mim num só pedacinho de segundo. Descobri que não quero morrer, embora metido quase sempre numa solidão a me levar, inclusive, a procurar a companhia de outros seres humanos naqueles buracos onde mal ganham o suficiente para comer. A descoberta me traz uma sorte qualquer de alegria, pois o presidente da Bolívia deve estar lá a olhar insistentemente pelo buraco de saída, prontificando-se a me abraçar sem torcer o nariz quando sente o quase cheiro da morte. Evo já trabalhou, acredito, nos campos de Sucre e Potosí, enquanto adolescente. Pode ser que ainda mastigue o vegetal maldito servido aos turistas que desembarcam nos altiplanos. Isso não importa muito, desde que eu consiga abrir esta portinhola satânica e respirar, depois de dois meses, um recorte do ar jogado pelo vento do deserto. Enfim, devo fazer promessas. Os redivivos sempre prometem alguma coisa. Saindo desta, vou procurar Consuelo, a única com quem me relaciono, além de Maria, a virgem, que é intocável, até por ser Santa Maria, mãe do Criador. Pego Consuelo e vou com ela à catedral de La Paz. Acendo três velas em agradecimento à salvação do meu corpo e dilatação do tempo em que deverei prestar contas das minhas faltas. Limpo os joelhos e me enrolo num lugar qualquer com a moça, purgando a saudade. Quando eu morrer, é bem possível que ganhe um lugar razoável no céu, sempre com a intermediação da Virgem Maria. Creio, apesar disso, que ainda não é hora de ir embora. Meu corpo ainda me serve. A Virgem há de ter paciência, mas quero terminar logo esta viagem podre, tomar um bom banho de chuveiro, abraçar quem me prometeu um emprego e fazer um afago no meu cachorro. Amanhã, se Deus quiser, devo achar a namorada. Afinal, sou apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior. Tenho vinte e cinco anos, um pouco mais talvez, mas não consigo esquecer a canção posta no mundo por um tal de Belchior. Não tenho economias, mas Evo Morales está me esperando. Adiós Morales e viva a Consuelo…

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