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Recrudescimento a caminho – Roberto Delmanto Junior

Recrudescimento a caminho*

Roberto Delmanto Junior

Estive presente ao evento promovido pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, pela Associação dos Juízes Federais e pela Escola da Magistratura Federal da 3ª Região, nos dias 31 de maio a 2 de junho de 2010, para debater o Projeto de Lei do Senado 156/2009 – Substitutivo CASAGRANDE.

Nove aspectos chamaram a minha atenção, gerando profunda preocupação com os rumos da reforma.

São eles:

1 ) Possibilidade de a Polícia colher depoimentos de forma informal, em qualquer local (art. 29, caput)

A par do grande constrangimento de um carro da polícia “baixar na casa de uma pessoa”, com os policiais nela adentrando para colher depoimentos “de modo informal’’, imaginem os leitores os abusos que tal permissivo legal propiciará.

É verdade que ao elaborar uma lei, deve-se ter o pressuposto de que os agentes públicos atuem com ética. Todavia, não se pode fechar os olhos para a nossa realidade, em que os abusos praticados pela polícia continuam, infelizmente, sendo frequentes.

O legislador há que levar em conta a realidade brasileira, o que significa não propiciar que se instale terreno fértil ao arbítrio. Ao contrário, deve-se instituir uma dinâmica processual que venha a minimizar (e não ampliar) a proliferação dos inevitáveis desmandos.

2 ) 360 dias para interceptação telefônica (art. 247)

Após 12 anos da Lei nº 9.296/96, o Superior Tribunal de Justiça, com amadurecimento, impôs rígido limite temporal à interceptação telefônica, fazendo cumprir o art. 5º dessa lei, que estipula o prazo de quinze dias, prorrogáveis por outro tanto.

Lembrando que até o “Estado de Defesa”, com liberdades individuais restringidas, tem o limite máximo de 60 dias, assim decidiu a sua 6ª Turma, em 13.5.2008, no habeas corpus nº 76.686/PR:

“(…) 5. Se não de trinta dias, embora seja exatamente esse, com efeito, o prazo de lei (Lei nº 9.296/96, art. 5º), que sejam, então, os sessenta dias do estado de defesa (Constituição, art. 136, § 2º), ou razoável prazo, desde que, é claro, na última hipótese, haja decisão exaustivamente fundamentada. Há, neste caso, se não explícita ou implícita violação do art. 5º da Lei nº 9.296/96, evidente violação do princípio da razoabilidade. (…)”.

Desse modo, o Substitutivo, ao ampliar o prazo da interceptação telefônica para 360 dias, dá ao Poder Judiciário poderes mais amplos do que se estivéssemos sob Estado de Defesa, implicando séria restrição às liberdades individuais.

3 ) Fiança de até 20.000 salários (art. 570)

O recrudescimento do Substitutivo é tamanho, que nem mesmo o Código Penal prevê, como pena, tal valor. Isso porque, lá, o número máximo de salários-mínimos a que uma pessoa pode ser condenada é de 1800 (art. 49).

Ora, considerando que toda a medida cautelar deve ser proporcional em face da gravidade do crime, não há o menor cabimento em se admitir uma fiança de até 20.000 salários-mínimos!

4 ) Prisão preventiva (art. 554, I, IV e V)

O Substitutivo mantém a prisão preventiva para a garantia da ordem pública ou da ordem econômica, apesar desses conceitos não terem fundamento cautelar, assumindo caráter de punição antecipada, com afronta à Constituição da República, que estabelece o direito à desconsideração prévia de culpabilidade.

Dir-se-á que na maioria dos países há a prisão provisória para a garantia da ordem pública, como um “mal necessário”. Mas isso não justifica a violação constitucional.

Também não há imaginar o que tem a ver uma prisão para a garantia da ordem econômica com a necessária cautelaridade de uma medida cautelar.

Cria-se também a prisão provisória pela “prática reiterada de crimes”. Ora, se o acusado vem reiterando o cometimento de delitos, deveria já estar cumprindo pena pelos primeiros, não é verdade? Teria, assim, a regressão de seu regime de cumprimento de pena, ou a revogação de eventual livramento condicional.

Há, aqui, como já afirmei (As Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de Duração, 2ª ed., Renovar, p. 179), dupla presunção de culpa: uma para o passado, de que o réu efetivamente cometeu o crime pelo qual é processado; outra para o futuro, no sentido de que, em liberdade, consumará o delito tentado ou praticará novos crimes.

O Substitutivo ainda estabelece que também caberá prisão preventiva em face da “extrema gravidade do fato”, quando é do conhecimento de todos que a gravidade do crime, por si só, não autoriza a prisão provisória, como pacificado pelo Supremo Tribunal Federal.

Se assim for, teremos de volta a prisão preventiva obrigatória!

5 ) Até 4 anos de prisão provisória, e nova prisão após o excesso de prazo (arts. 556 e 559)

Sempre defendi a necessidade de a lei estabelecer prazos máximos para a prisão provisória, tendo até esboçado um anteprojeto de lei (Revista doIBCCRIM, nº 32, p. 354 a 366).

Isso porque hoje não há um prazo máximo para a prisão provisória no Brasil, com total insegurança jurídica.

Ocorre que o Substitutivo exagerou com a possibilidade da prisão provisória perdurar por até 4 anos.

Ademais, os prazos são praticamente os mesmos para todos os crimes (6 meses durante a investigação ou processo em primeiro grau; 1 ano após a sentença condenatória, com acréscimo de 6 meses se houver recurso especial ou extraordinário).

Tratando-se de crime cuja pena máxima seja de 12 anos ou mais, há aumento de 2 meses em cada uma das três fases, totalizando 2 anos e 6 meses.

Se o caso for de Júri, somam-se 6 meses entre a pronúncia e o plenário, perfazendo 3 anos.

Havendo fuga, os prazos computam-se em dobro se recapturado, com a limitação de que a prisão não ultrapassará 4 anos (art. 557, § 2º).

Tenho o temor de que, na prática, o prazo será o de quatro anos, sem prejuízo das corriqueiras análises empíricas “se o excesso verificado foi razoável ou não”, “se o atraso foi provocado pela defesa”, “se a instrução já está encerrada”, “se a causa é complexa” etc., para justificar o desrespeito aos prazos.

E se o réu for absolvido? Deveria o Projeto prever expressamente a indenização, como sucede na Itália.

Deveria também ser expresso que a economia de prazo em uma fase não pode ser compensada pelo excesso em outra.

Há um fato mais grave.

Mesmo tendo havido excesso de prazo, poderá o juiz decretar nova prisão, por mais um ano, se o acusado deixar de atender intimações ou na hipótese dele ter “comportamento gravemente censurável” (art. 558, § 2º).

A primeira possibilidade é draconiana porque ele tem o direito ao silêncio, que inclui a possibilidade de não colaborar com o processo, aguardando passivamente o seu resultado, ainda que não atenda às intimações judiciais, o que não se confunde com fuga.

Tem ele o direito de estar fisicamente ausente, estando representado por seu defensor, inexistindo a figura da revelia, como anotei em meuInatividade no Processo Penal Brasileiro, RT, 2004.

Despropósito, também, é novamente prendê-lo por 360 dias por ter ele adotado conduta “gravemente censurável”. Ora, o que seria essa conduta? Uma entrevista a um programa de rádio ou televisão?

Cria-se uma nova modalidade de prisão, mesmo já tendo havido excesso de prazo, com critérios absolutamente vagos, o que é um retrocesso.

6 ) Outras medidas cautelares (arts. 585 a 607)

Sempre foi ponto pacífico entre os doutrinadores que o Código deveria prever, entre a prisão e a liberdade provisória, um meio termo, com outras medidas cautelares.

Assim defende Fabio Delmanto, em livro intitulado Medidas Substitutivas e Alternativas à Prisão Provisória (Rio, Renovar, 2007).

Ocorre que, no Projeto, houve a previsão de várias medidas diversas da prisão, das quais somente uma – a do monitoramento eletrônico (arts. 589 a 592) – é expressamente tida como alternativa à prisão cautelar.

Todas as outras são previstas como medidas que poderiam ser aplicadas de forma autônoma:

- prisão domiciliar por até 1 ano (arts. 586 a 588);

- suspensão do exercício de função pública (“com prejuízo da remuneração”, o que é um non sense, já que a pessoa não foi julgada!), profissão ou atividade econômica (art. 593) por até 6 meses;

- suspensão das atividades de pessoa jurídica em crimes contra o meio ambiente, ordem econômica e relações de consumo por até 6 meses (art. 594);

- proibição de frequentar determinados lugares por até 2 anos (art. 595);

- suspensão da habilitação para dirigir veículo automotor, barco ou aeronave por até 2 anos (art. 596);

- afastamento do lar ou outro local de convivência com a vítima por até 2 anos (art. 597);

- proibição de ausentar-se da comarca ou do País por até 2 anos (art. 598);

- comparecimento periódico em juízo por até 2 anos (art. 599);

- proibição de se aproximar ou manter contato com pessoa determinada por até 2 anos (art. 600);

- suspensão do registro de arma de fogo e da autorização para porte por até 2 anos (art. 601);

- suspensão do poder de família por até 1 ano (art. 602); e

- bloqueio de endereço eletrônico na internet por até 2 anos (art. 603).

Mesmo escoados os seus prazos, poderia o juiz adotar outras medidas, em caso de extrema necessidade (art. 604, parágrafo único).

Como dito, a maior preocupação é a de que essas medidas, do modo como está o texto, não são necessariamente alternativas ou substitutivas de uma prisão.

Isso significa que a sua aplicação poderá se transformar em regra geral, mesmo para casos em que jamais teria o juiz cogitado prender o acusado.

Prisão, essa, que agora poderá vir se houver descumprimento dessas restrições autônomas (art. 607), com enorme recrudescimento.

7 ) Habeas corpus

Foi com pesar que ouvi o discurso de que a “culpa” do caos processual é do excesso de habeas corpus, devendo ele ser restringido!

Assim o Substitutivo prevê em seu art. 647, I, que o habeas corpus seria aplicável somente a casos em que o paciente esteja efetivamente preso ou na iminência de sê-lo, e não mais também para se trancar uma ação penal por falta de justa causa ou para o reconhecimento de uma nulidade, mesmo em liberdade.

Em contrapartida, é previsto o recurso de agravo (arts. 469 a 477), em regra retido e com efeito devolutivo, podendo se processar por instrumento e excepcionalmente ter efeito suspensivo, dependendo do caso e a critério do próprio juiz ou do tribunal agravados (o que permite concluir que o efeito suspensivo será raro).

Nesse contexto, a limitação do habeas corpus é um erro, destacando-se quatro razões.

A primeira é que nos Tribunais de Justiça e nos Tribunais Regionais Federais, em termos de volume, nada mudará: ao invés de habeas corpusteremos recursos de agravo.

A segunda, é que os agravos processados mediante instrumento, com raro efeito suspensivo, nem de longe suprirão a lacuna deixada pela restrição imposta ao habeas corpus como ação rápida de garantia do cidadão.

A terceira razão é a de que, do acórdão que julgar o agravo, só se poderá chegar aos Tribunais Superiores por meio de recursos especial e extraordinário, cuja admissibilidade é dificílima, não mais cabendo habeas corpus!

A quarta é que, se o projeto busca celeridade, é uma incongruência restringir a única ação que atualmente é célere!

8 ) Suspensão do prazo prescricional (art. 502)

O art. 502 do Substitutivo prevê o non sense de se suspender o prazo da prescrição enquanto pendentes recursos especial e extraordinário.

Como se sabe, a prescrição é uma forma de autolimitação do Estado, lembrando Francesco Antolisei que “o decurso do tempo atenua normalmente o interesse do Estado a aceitar o crime e até a executar a pena que tenha sido aplicada, interesse que é diminuído com o desaparecer da memória do fato e das suas conseqüências sociais” (Manuale di Diritto Penale, 13ª ed., atualiz. por Luigi Conti, Milano, Giuffrê, 1994, p. 708).

Na lembrança de Rui Barbosa“justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”, perdendo o sentido.

A prescrição tem o efeito de diminuir, ainda, as chances de erro judiciário já que, com o tempo, as provas vão se tornando mais frágeis.

E ao assim fazer, leva a que o Estado se movimente, lembrando-se a preocupação dos juízes em não deixar escoar o prazo prescricional “em suas mãos”.

Pois bem, hoje, com a alteração que a Lei n. 12.234/2010 fez ao art. 110 do Código Penal, já temos um desproporcional e irrazoável prazo prescricional entre a data do fato e o recebimento da denúncia, incidindo somente os prazos máximos da prescrição em abstrato.

Como escrevi em artigo publicado no Estado de S. Paulo (“A Caminho de um Estado Policialesco”, 02/06/2010, p. A2), essa alteração premiou a letargia das investigações policiais, bem como fomentou o abuso de poder, já que uma pessoa pode agora ser investigada e denunciada, por exemplo, por um crime de furto em concurso de pessoas, até 12 anos após o fato, sem prescrição!

Distorção que viola o art. 5º, LXXVIII, da Constituição da República, que assegura a todos “a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

Nesse quadro, a proposta do art. 502 é ainda mais perniciosa, ao não só fomentar a morosidade de nossas Cortes Superiores, como também por criar verdadeiras hipóteses de imprescritibilidade, violando-se o art. 5º, incisos XLII e XLIV da Constituição da República.

9 ) Apresentação do preso em flagrante ao juiz

Desde que o Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova Iorque, existe, em nosso ordenamento, o dever (reiteradamente desrespeitado) das autoridades policiais apresentarem a um juiz de direito o preso em flagrante.

Respectivamente:

“Art. 7º, 5: Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais (…)”;

“Art. 9º, 3: Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais (…)”.

Desse modo, o juiz (no caso do projeto o “Juiz das Garantias”) deve decidir, na presença do acusado, de seu defensor e do membro do Ministério Público, sobre o relaxamento ou não do flagrante (na hipótese de nulidade), sua manutenção ou revogação com a concessão de liberdade provisória mediante fiança ou sem fiança ou ainda sobre a imposição de outra medida cautelar pessoal que seja substitutiva da prisão - vide críticas no item (6).

Essa disposição não existe à toa; é eficaz instrumento de inibição à tortura policial, como me manifestei há mais de treze anos (Tribuna do Direito, julho de 97).

Ora, se os Tratados compõem o nosso ordenamento, em patamar “supralegal”, como assentou o Supremo Tribunal Federal, não poderia o projeto deixar de adotar essa disposição tão clara e óbvia, o que gera profunda irresignação. Afinal, a tortura é um problema presente no Brasil, ou não é?

* Extraído, com autorização do autor, do Boletim IBCCRIM ano 18, edição especial, de Agosto de 2010

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