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José Ângelo Gaiarsa morreu

* Paulo Sérgio Leite Fernandes
**Gustavo Bayer
José Ângelo Gaiarsa morreu***


Soube da existência de José Ângelo Gaiarsa ao mesmo tempo em que assistia à peça “Hair”, em montagem brasileira, sim, numa semelhança bem aceitável com o original passando na Broadway. Lembro-me bem do término daquele espetáculo. Os atores, depois de estarem totalmente nus sob enorme e flutuante dossel – nudez quase asséptica, diga-se de passagem –, encerravam o espetáculo atirando margaridas no público. Eu estava no “gargarejo”, é lá que fico, ainda hoje, nas raríssimas ocasiões votadas a uma ou outra peça teatral. Frequentei muito mais. Lembro de “Mary Stuart”. Fui à coxia depois da apresentação. Esperava que a rainha, vestida nas sete saias, me convidasse a um cálice de vinho do porto contido em finíssimo cristal. Olhou-me, sorriu, e disse: “– Tio, vamos tomar um chopinho na esquina?”. Quebrou-se o encanto. Nunca mais estive nas sombras atrás do palco.

“Hair” veio ao Brasil nos idos de 1965. Ficou-me na memória. Se perguntarem a razão não sei. A data, igualmente, é incerta na minha caixa interna de retalhos temporais. E não vou procurar no “Google”, satânico estraga-prazeres dos fabuladores. Foi naquela década, com certeza. Dez anos a mais ou a menos fazem pouca diferença no contexto. Aquela montagem teatral surgiu enquanto ao lado, ou adiante, explodia “Woodstock”, milhares de jovens gritando “amor e paz” enquanto soltavam baforadas adocicadas cheirando a maconha. Havia o novidadeiro “LSD”, trazido ao Brasil por um tal de Cesário Hosri, com licença para  matar, viu-se depois, porque tinha autorização a experiências do tipo. Conheci o gajo. Teve certa notoriedade. Gilberto Gil e Rita Lee apareciam no cenário musical. Hoje não seriam presos por portarem um baseado. Maria Bethânia começava a aparecer (Carcará, pega, mata e come). Caetano Veloso, um rapazelho, brigava para ser adulto Falava-se de Chico Buarque, Nara Leão, Edu Lobo, Jobim, Vinicius e tantos outros… não peço desculpas por esquecer  os restantes, isto não é crônica exata. Tem muito de imaginação.

Por que escrevo estas linhas? É simples. Caía-me nas mãos, naquela década, um livro de José Ângelo Gaiarsa, chamado “A Engrenagem e a Flor”, com não muitas páginas mas, seguramente, influência muito grande no comportamento. Gaiarsa era psiquiatra, ou terapeuta, se preferirem, nunca um psicanalista freudiano clássico. Tenho aquele volume ainda, já gasto e sublinhado em várias passagens. Aconselho meus agregados às anotações. Sempre acreditei que livro não marcado é como noiva intocada…  emprestei-o a um amigo não amadurecido. Fugiu de casa e voltou sessenta dias depois. O efeito borboleta da leitura havia sido parcial. Fosse pleno e o leitor teria ficado em Havana para sempre. Aquele jovem influenciável teve, certamente, uma entre três opções dramáticas a escolher: fugir de casa, ir a um bordel ou comprar um celular novo. Escolheu a primeira. Não gostava da segunda e, à época, os telefones portáteis não haviam aparecido.

Li outros escritos de José Ângelo Gaiarsa. Um deles falava do sexo na adolescência. Os pais não deveriam proibir aos filhos e filhas a experiência sexual, em casa mesmo, sob a proteção do teto familiar. Um escândalo. Hoje em dia é normal. Moços e moças escolhem, nos fins-de-semana, a dormida na cama da cada qual.

Voltando ao genial cuidador de almas, só o vi pessoalmente uma vez. Alguém me levou ao lançamento de obra sua. Penso confusamente na data. Foi num galpão, ou barracão, ou lugar qualquer, o espaço físico não faz grande diferença. Ficou-me no pensamento a imagem de um homem vestindo bata branca imaculada. Atendia com amabilidade aos pedidos de autógrafos, até desculpar-se e dizer que ia dançar um pouco, uma espécie de embalo vagaroso e macio, produzindo sensação análoga às cerimônias em terreiro de umbanda, um meio-transe sincronizado nos atabaques. Era assim e não era assim? Paciência! Fica como está.

Em certa ocasião, Carlos Drummond de Andrade introduziu comentários num CD contendo músicas de Vinicius de Moraes. Dizia que a obra do poeta só poderia ser avaliada trinta anos depois. Mentira. Errou redondamente, pois há manifestações do ser humano que apenas permanecem, como “Blue Moon” e “Garota de Ipanema”. Músicas são esquisitas. Fiquei um mês surtando num trecho de “Eu sei que vou te amar” repisando na memória: – “E cada verso meu será pra te dizer que eu sei que vou te amar, por toda minha vida…”

José Ângelo, o Gaiarsa, nasceu, viveu noventa anos, morreu mas permanece por aqui. Simplesmente permanece. Deu entrevista em setembro passado. Estava esperto, sempre anárquico e muito lúcido. Parecia o homem que foi quinta-feira. Confessou um romance. De repente, chega a notícia de sua viagem ao além, ou a lugar algum. O genial psiquiatra vai ter, com certeza, missa de 7° dia, pois, na dúvida, os parentes fazem o melhor possível. Foi enterrado, nunca incinerado tecnologicamente. No fim das contas, não era o momento de continuar entre nós, partindo devagar à maneira freudiana, pleno de sofrimentos e degradação corporal. Não sei se acreditava no Ego, Super Ego e Id, ou no Pai, Filho e Espírito Santo. Enquanto vivo, esteve “numa montanha-russa de sombras e luzes”. Foi muito ativo, e viver muito não foi fácil. “A cada pouco tempo, perde-se a casca. Descasca o velho e aparece o novo. Viver é muito bom”. E ele esteve vivo. E só****.

* Advogado criminalista em São Paulo há cinquenta e um anos.

** Áudio e vídeo

*** O texto é de única e absoluta responsabilidade do autor Paulo Sérgio Leite Fernandes. O intérprete Gustavo Bayer é apenas o ator.

**** Corruptela de entrevista fornecida à revista “Poder” de setembro de 2010

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