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Alice no País das Maravilhas, o Supremo Tribunal Federal e o Chapeleiro Maluco

Alice no País das Maravilhas, o Supremo Tribunal Federal e o Chapeleiro Maluco


Paulo Sérgio Leite Fernandes

Seres humanos gerados na década de 30, entremeio, portanto, da primeira e segunda guerras mundiais, têm formação absolutamente diferente daquelas gerações vindas depois, por exemplo, da era representada pela denominada “Guerra do Vietnã”, deflagrada a partir da década de 60, cuidando-se, já se vê, de desastrada incursão militarista dos Estados Unidos da América do Norte. Não vale a pena enfrentar aspectos das três conflagrações. É coisa para vetustos analistas versados nas grandes violências da história da humanidade. Vale dizer que o cronista amadureceu depois da implantação no Brasil da libertária Constituição de 1946. Assim, os chamados “Anos Dourados” o pegaram na plena juventude. Sem saudosismo qualquer, relembre-se aquele belo pedaço de vida, descrito pelas bordas em Ponto Final anterior (José Ângelo Gaiarsa morreu). Deve ter sido, aquele marco, extremamente importante, pois transformou a experiência do escriba, muitos anos depois, num poema comprido rotulado “Alameda dos Anos Dourados”, perpetuado em CD e posto no mundo pela voz de Gustavo Bayer, seguramente uma das melhores do país.

O início parece desconexo porque, no fim das contas, pretende-se comentar, também em síntese fechadíssima, o fenômeno sócio-político-econômico atravessado pelo Brasil a partir de 1° de abril de 1964, misturando-se a ditadura aterrorizante, o paulatino abrandamento do Estado Autoritário e, finalmente, a chamada redemocratização formal, nisto interferindo o povo, sim, mais a denominada “Carta aos Brasileiros”, sabendo-se da diverticulite que matou Tancredo Neves, elegeu o sempre-vivo José Sarney e passou, adiante, às denominadas eleições diretas. O cronista juntara suas mãos àquelas outras entrelaçadas na passeata, no Anhangabaú, em São Paulo, buscando participação, também, em Brasília, no movimento gerado pela OAB. Morreu gente, desde as guerrilhas até o assassínio de Vladimir Herzog (apenas episódico, ou incidental), Manoel Fiel Filho e mais alguns, anônimos por certo, seus cadáveres deixados em cemitérios clandestinos nos sertões do Araguaia e mesmo em valas comuns de cemitérios legalizados. As mutações sociais são assim, em grande maioria. As revoluções autênticas merecem aspersão no sangue de ditadores e dos mártires, numa espécie de extravagante purificação.

O Brasil já passou por isso várias vezes, em convulsões classificáveis como de não grande monta se comparadas àquelas em países outros. Se vale a comparação pelo número de defuntos, a Argentina, aqui perto, ainda guarda, nos armários misteriosos da antiga polícia política, o nome de centenas e centenas de assassinados pelo regime de terror, à época posto dentro da Casa Rosada.

Há no introito uma aparente falta de conexão com o texto da crônica. Ver-se-á, entretanto, a existência de ligação quase abstrata entre o mundo ficcionista de Alice no País das Maravilhas, o turbilhão mundial deixado pelas duas grandes guerras, a conflagração no Vietnã, a implantação da ditadura no Brasil, a redemocratização do país e, agora, a atualidade brasileira, não se devendo esquecer, também na qualidade de mefítica intromissão, o terrorismo universal que fez explodir trens, túneis, aviões e vísceras na Espanha, Inglaterra, Iraque, Indonésia, Egito e outros tantos. Dir-se-á que o escritor deixou passar as Torres Gêmeas de Nova York, episódio inesquecível acontecido em 11 de setembro de 2001. O escriba, naquele dia, caminhava pela rua Direita, em São Paulo. Viu pequena multidão aglomerada à frente de uma vitrine de loja que vendia televisores. Não se sabia, em princípio, a natureza das cenas mostradas nas telas. Percebeu-se então o horror representado pela penetração daqueles longos tubos (os aviões) na barriga das duas edificações. Saía aos borbotões uma fumaça escura entremeada de fogo cor de sangue. Aquilo tinha, psicoticamente, certo ar de violência carnal…

Dos “Anos Dourados” aos dias de hoje, já se percebe, a memória do septuagenário cronista guarda esses fatos trágicos. Afirmar-se-á que o relato de tais dramas é descompassado e impreciso, mas cada qual tem sua máquina de pensar e não existe adequação entre umas e outras.

O cérebro humano se assemelha a cornucópia vertendo imagens aparentemente desencontradas quando impulsionado por estimulantes nem sempre específicos. Quanto ao escrevinhador, o desencadeamento de reflexões madrugadeiras se deu, impactante, à notícia do resultado do julgamento, no Supremo Tribunal Federal, de um dos famosos processos “Ficha Limpa”, levado à Corte pelo Senador eleito Jader Barbalho, recipiendário de quase dois milhões de votos do povo brasileiro e, por força de conflitos sobretudo de natureza política, impedido de se diplomar e ser empossado. Em outros termos, uma salomônica decisão do Supremo Tribunal Federal, após empate na votação, faz prevalecer decisão demeritória emitida antes pelo Tribunal Superior Eleitoral. Aquilo fez lembrar, em ideias associativas, episódio certamente repetido nas arenas dos Césares na Roma Antiga, quando, instado a decidir se erguia o polegar ou o voltava para o chão, Augustus recolhia o punho sob os debruns da toga, remetendo a decisão a lugar algum. Embaixo, na arena salpicada por manchas rubras, duas multidões de participantes fantasmagóricos esbravejavam: uma parte queria a vida do combatente. A outra supria a inércia de César e exigia a degola do lutador quase vencido. Que cena dolorosa! Afirmariam os maus espíritos, escabujando pelos cantos das bocas, que a moralidade exige, entre as malhas da armadura do lutador ajoelhado, a ponta aguda de punhal sacrossanto. Há, entretanto, no canto oposto, dois milhões de apostadores exigindo a preservação da vida do gladiador ferido. Polegares apontando para o céu, amparam o moribundo. Uns e outros, os carrascos e os crentes, são parte da brasilidade. Mas, na verdade, quando César ocultou a mão nas dobras da toga negra, deixando o resultado àqueles cujos pés se banhavam na poeira avermelhada embolada na seiva vertente do combate ideológico entre múltiplas facções políticas subterrâneas, perdeu a possibilidade de, na dúvida, manter batendo o coração descompassado. Já se viram, no passado, grandes demonstrações de amor à sobrevivência política de réus submetidos ao Supremo Areópago brasileiro, mas é originalíssima a hipótese de se assassinar, num só ato – aliás omissivo –, a vontade de quase dois milhões de brasileiros. Não é momento e não é hora de se examinar juridicamente a conclusão escolhida pela Superior Instância após o empate angustiante. E não tem o solitário crítico voz suficiente a tanto. Diga-se haver justificativa jurídica para qualquer coisa, pois nós, advogados e juízes em geral, somos pródigos em reflexões de tal jaez. É momento apenas de repetir, com outras palavras, um quase brado do Ministro Gilmar Mendes enquanto afirmava existir no Brasil uma tendência nazi-fascista a se avolumar no tempo. Dizendo-o abertamente, desatento inclusive a possíveis recomendações de moderação advindas dos bastidores no intervalo, aquele magistrado repetia a ansiedade do cronista, já antiga, relacionada a perigosíssima vocação autoritária grassando na penumbra dos horizontes políticos universais (v. Ponto Final “O Brasil e o Neossocialismo Nazista”). Disfarçada na denominada “vontade popular”, há satânica onda de defesa social destruidora do indivíduo em benefício da comunidade e, por consequência, do Estado-Administração. Tal característica constitui venenoso suco derramado alhures, vomitado pelo nazi-fascismo, sim, que emporcalha inclusive os ensinamentos postos a lume em muitas cátedras das nossas universidades. Ali, a delação premiada, podre imitação de direito processual alienígena, é representada como necessidade de defesa do bem contra o mal, embora significando verdadeiro estelionato judicial acolitante de criminosos sob o manto sagrado da jurisdição. Mais adiante, clonando costumes sequenciados no exterior, segmentos do Poder Judiciário, empurrados por órgãos persecutórios, intrometem-se sob os dosséis dos casais, violam a intimidade dos domicílios, apreendem as roupas de cama, as panelas, o vestuário íntimo, os segredos advindos dos sussurros ecoando nas noites e madrugadas do amor e envoltos nos próprios murmurares postos no mundo enquanto, talvez, se esteja a concretizar o primeiro momento da geratriz dos descendentes, descartando os espiolhadores, após a volúpia das degravações, aquilo que não serve aos objetivos de punição. Que porção ruim do nosso país! Desconsidere-se a ditadura fiscal, colocados os cidadãos dentro de verdadeiro assalto eletrônico criado pelo aperfeiçoamento da cobrança de tributos inventados por Senhor Feudal que toma e não devolve, empunhando, no ataque, o cetro do poder irresistível.

Perceba-se, no raciocínio mais ou menos calidoscópico, a unidade racional da crônica. Atrás do conflito hodierno levado à Suprema Corte brasileira, há todo o contexto de uma confusão universal. Admita-se que tal ambiência deve ter assombrado o sono dos eminentes ministros que se tornaram atores de um dos mais importantes episódios do conflito ideológico subjacente não no Brasil, mas no mundo todo, combate este em que se tem como sobrepujante a crença na imolação do ser humano em favor de uma comunidade cuja dimensão e existência não têm, sequer, medida no conceito de “vontade popular”. A mesma vontade a concretizar o mais de milhão de assinaturas inspiradoras da denominada “Ficha Limpa” tem peso inferior aos quase dois milhões de votos, estes verdadeiramente computados, dirigidos ao cidadão Jader Barbalho, cuja existência o cronista nem introduz no jogo dialético, porque só o conhece ao longe. Apesar disso, episodicamente, o candidato em causa congrega multifária batalha que tem eflúvios, creia-se, no nazi-fascismo a que Gilmar Mendes se referiu, acompanhado por Marco Aurélio, Celso de Mello, o moço Antônio Toffoli e Cezar Peluso. Lamentavelmente, no frigir dos ovos, César ocultou o polegar na escuridão da vestimenta, mesmo confessando profunda tristeza, porque o polegar voltado para o solo contrastava com a tendência do seu coração. O velho escriba, sessenta e dois anos atrás, leu “Alice no País das Maravilhas”. Há ali um trecho descrevendo alegoricamente uma corrida eleitoral. Aquela maratona não tem regras, exceção feita a uma que obriga os competidores a correrem em círculos. Terminada a prova, todos vencem, merecendo prêmios. Alice se dispõe a contribuir com seus doces, recebendo igualmente premiação. Surpreende-se: sua recompensa é apenas um dedal. O capítulo se encerra quando Alice deixa o átrio, entristecida com uma história que lhe contou um dos personagens.

“Alice no País da Maravilhas” não se desgarra dos neurônios do cronista. Repassando a cena, o gasto fabulador não tem alternativa a não ser vestir a pele do Chapeleiro Maluco. Consola-se, na dor gerada pelo resultado do julgamento do Supremo Tribunal Federal, com uma ferida assemelhada exibida por Cezar, o Peluso. Paroxisticamente, punem-se ambos, retirando os chapéus e cobrindo a fronte de cinzas. Alguém deveria dizer a César Augusto que a oportunidade histórica exigia uma empunhadura com o polegar apontando as nuvens. A hora passou. E o gladiador foi executado. Com ele feneceu a vontade, no mínimo, de um milhão e setecentos mil brasileiros.

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