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Entre Dilma e Serra, meu coração não balança

* Paulo Sérgio Leite Fernandes
**Gustavo Bayer
Entre Dilma e Serra, meu coração não balança***

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Escrevo esta crônica exatamente às 19:00 horas do dia 24 de outubro de 2010, a uma semana do 2° turno das eleições que hão de apontar o novo presidente da República. Há um combate desenfreado pela conquista dos chamados votos indecisos. Acusa-se gente indeterminada de ter escolhido o domingo, 31 de outubro, para as eleições, pois é véspera de feriado. A burguesia bem aquinhoada aproveitaria, segundo se alega, para esticar o descanso, deixando de votar. Não creio que isso aconteça, pois os burgueses, nos quais me incluo, estão decididamente dispostos ao cumprimento do chamado dever cívico.

Creio que a candidata a “presidenta” (a moça usou esta expressão, desconhecida nos dicionários nacionais) há de vencer, por margem pequena de votos, mas ganha de Serra, isto não significando resultado que me deixe feliz. Aliás, o termo “presidenta” é neologismo aqui. Na América Latina pode haver, até, uma “presidenta” Cristina Kirchner, mas o exemplo não é edificante. Isto acaba por incorporar-se ao vernáculo, como quase aconteceu ao desastre econômico gerado por Collor de Melo depois de sequestrar os dinheiros da classe média brasileira. Até hoje um ou outro correntista desafortunado tenta recobrar o prejuízo, curtindo decisões judiciais desencontradas. Collor, hoje senador, cunhou o dito “duela a quién doler”. Faz parte do anedotário, se a memória não falha, do genial José Simão.

Na verdade, já escrevi alhures que optaria por quem, entre todos, reservasse um pedaço de seus propósitos eleiçoeiros a garantir aos brasileiros esforço avantajado na proteção dos chamados direitos e garantias individuais previstos na Constituição. Queria saber, no entremeio da disputa, qual dos dois remanescentes se proporia a vetar dispositivos de projeto a ser remetido, mais tarde, ao parlamento, dispondo sobre a interceptação eletrônica, em substituição à lei vigente, outra infeliz iniciativa de grupo de ingênuos processualistas penais brasileiros que não atentaram para a calamidade em que se transformou a lei em vigor, cujo menor prejuízo foi o de transformar muitos promotores de justiça e magistrados em espiolhadores da intimidade alheia, espionagem esta que sequer poupou, lá atrás, eminentes ministros do Supremo Tribunal Federal. Eu pretendia, igualmente, que meu candidato (ou minha candidata, quem sabe), prometesse esforço enorme para higienizar o sistema penitenciário nacional, não se devotando, diga-se bem, à construção de presídios de segurança máxima que reduzem os presos a animais inferiores vigiados 24 horas ao dia por esbirros e câmeras de televisão que reduzem a privacidade ao limite zero. Tal exemplo o governo Lula soube realizar, sob a batuta de Ministro da Justiça que se transformara em braço direito e primeiro escriba do Faraó. Em vez disso, vi os dois pretendentes remanescentes discutir, sem assunção aberta de posição, se o abortamento deve ou não ser liberado além da legislação hoje vigente, sabendo-se que a farmácia de qualquer esquina vende às mancheias a denominada “pílula do dia seguinte”, abortiva sim, porque impede a nidação do ovo (óvulo já fecundado, portanto) no útero da mulher, constituindo, evidentemente, um microaborto. Preocupava-me, sim, com os viventes postos atrás de malsinadas grades, mas presos definitivos não votam. De outra parte, o mundo inteiro dá pouca importância ao cidadão enquanto tal, valorizando, sim, o social em desprimor do indivíduo, transformando-se o Estado num monstro a devorar, sequioso, aquele que se lhe opuser, tudo numa atividade insidiosa a perfurar as algibeiras do contribuinte, materializando uma ditadura fiscal aperfeiçoadíssima a beneficiar o grande usurário, que toma, dilapida e não devolve o produto da extorsão consumada no cruzamento de dados hauridos pela satânica via eletrônica. Anos atrás, ainda numa crônica perdida por aí, eu prevenia o povo sobre o enlaçamento entre o número de Registro Geral e o chamado “CIC”. Era o tempo de Fernando I e Único, rei do Brasil, preparador dos tempos modernos a aplainador, agora, de possível resistência a Serra. Eu queria, sim, que o candidato (ou candidata?) eleito se aprestasse a gerar um Poder Judiciário realmente independente, dentro do qual o Juiz Fazendário não fosse um sequaz do Senhor Feudal, mas sim, a um protetor do cidadão contra o preposto da apropriação indébita estatal a revirar as panelas do povaréu que esconde restos de alimentos sob a cama, a ver se alguma porção sobraria da cupidez dos fiscais do rei, isto num país em que os impostos e tributos em geral são os maiores do mundo. Enfim, esperava que os candidatos se preocupassem em assinalar uma posição diferente daqueles juristas que sugeriram e levaram ao Senado, mais à Câmara dos Deputados, sem veto algum do presidente da nação, modificações satânicas dos códigos vigentes, a exemplo da denominada “delação premiada”, caracterizadora, sem dúvida alguma, de verdadeiro padrão moral levando a Justiça a trabalhar num quase estelionato que nem sequer premia a alcaguetagem.

Esperava, sim, que o homem e a mulher, ou um deles, dissesse algo a respeito da manutenção das garantias atinentes à liberdade do cidadão, os mesmos dois que se jactavam de terem sido perseguidos pelo regime ditatorial do passado, o primeiro dizendo-se exilado, a outra cumprindo bom tempo nas masmorras da ditadura. Tais particularidades, extremamente importantes para o advogado, seriam incidentais para os concorrentes. Para mim, diga-se a título de encerramento, são extremamente importantes. Para o brasileiro também. O povo elegeu um parlapatão “Tiririca” porque quis. O cidadão pode ou não gostar das orelhas da Dilma ou da calva de Serra. Clint Eastwood foi eleito prefeito de uma cidade dos Estados Unidos da América do Norte apesar de ter pereba crônica pouco acima do lábio direito (ou esquerdo, tanto faz). É como fingir que é comunista sem ser. Ninguém percebe. As coisas são assim. Caracteriza-se a democracia pelo respeito à consciência de cada qual. Dentro do contexto, além de questões objetivas, tudo diz com a chamada “empatia”, expressão muito usada, ao tempo, pelo genial criminalista Waldir Troncoso Peres. Não tinha simpatia por Dilma, mas votaria na moça, se me desse um aceno sequer de respeitar a inviolabilidade do domicílio e a intocabilidade das comunicações entre um e outro brasileiros. Senti dificuldade, igualmente, em depositar meu voto em José Serra. Um gesto do candidato em torno daquilo que é minha obsessão de velho cavaleiro andante da advocacia criminal desequilibraria a favor do homem minha predileção. Repito, às 19:45 horas do dia 24 de outubro de 2010: a moça vence as eleições. Leva uma ralada, mas ganha. Torço o nariz à “presidenta”. Lembro-me, a propósito, de relato não muito confiável respeitante a Spartacus, na velha Roma dos césares: os gladiadores insubmissos venceram episodicamente uma batalha qualquer. Puseram vencidos na arena para serem trucidados pelos leões e riram nas arquibancadas. O Poder é assim.

Antecipo o resultado. A moça há de ser Dilma I e Única, Rainha do Brasil. Ou melhor, Luiz Inácio obteve a vitória, num esforço desmesurado, desorientado e, enfim, endoidecido. Insisto: prevejo o resultado a uma semana do desfecho. Preferiria que não fosse assim. O Brasil atravessa, indubitavelmente, um período de terrível autoritarismo econômico. Há de ser muito ruim com a sobrevivente do negror. Com Serra, no fim das contas, não seria diferente. Eis aí. “Procurando bem, todo mundo tem pereba. Só a bailarina que não tem” (Chico Buarque, o da trupe).

Parte I

Parte II

* Advogado criminalista em São Paulo há cinquenta e um anos.

** Áudio e vídeo

*** O texto é de única e absoluta responsabilidade do autor Paulo Sérgio Leite Fernandes. O intérprete Gustavo Bayer é apenas o ator.

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