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O Brasil também tem Marat, Danton, Saint-Just e Robespierre

* Paulo Sérgio Leite Fernandes
**Gustavo Bayer
O Brasil também tem Marat, Danton, Saint-Just e Robespierre***

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A corrupção é fenômeno incrustado no ser humano e, não é extravagante dizer, nos próprios animais ditos inferiores. Faz parte da vida. Pensa-se que corruptos e corruptores inexistiam ao tempo dos primitivos. Bobagem grossa. Já na Idade da Pedra havia, episodicamente, a compra de um pedaço maior da caverna, antes reservado a habitantes outros, mediante a oferta, por exemplo, de uma ponta afiada de sílex obtida a custa de paciente e metódico trabalho. Já se sabia na tribo ou, em se preferindo, no grupo, que aquela porção de terreno era proibida à maioria. De uma forma ou de outra, entretanto, aquilo era disputado. Se a fraude fosse descoberta, bem possível seria que a clava do líder – sempre há um chefe – desabasse sobre o crânio do desobediente. A coisa se complicava se a apropriação partisse do próprio dominante.

Ironicamente, o conflito entre aqueles que querem mais e a reação dos que têm menos se instala entre os chimpanzés, animais selvagens em geral e, até, entre cães de estimação, sabendo-se de cadelas perfumadas e portadoras de bom currículo que chegam a lamber as donas visando obtenção de lugar melhor e mais quentinho na cama do casal, disputando preferência com outro cão. É Pirandelliano? Pode ser, quem sabe? Seres humanos e bichos não têm, no bom e no mau comportamento, grande diferença. Há os ferozes, os autênticos, os sibilinos, os disfarçados. Um adestrador, certa vez, deixou seu trabalho de rotina para visitar, em emergência, uma ONG destinada a cuidar de cães abandonados. Havia nos fundos da sede um grande cercado. Um dos habitantes aparecera morto de manhã, esgorjado por dentes afiados. O resto da matilha se agrupara num canto, absorta. Cumpria elucidar o mistério, porque “cesteiro que faz um cesto, faz um cento”, podendo existir na família um dissimulado “serial killer”. Foi difícil a solução. Nem se podia pesquisar eventual vestígio físico da infração no focinho ou nas bochechas do canicida, pois os animais, à maneira dos humanos, gastam adrenalina na agressão e defesa. Têm sede. Bebem água nas vasilhas e limpam as marcas. Na dúvida, a comunidade toda pagou pelo enfrentamento das regras comunitárias.

É tudo análogo. Alguém já escreveu sobre “A Revolução dos Bichos”. Se a memória não falha foi George Orwell.

Dentro da semelhança de fenomenologia entre seres inferiores e homens (sem exceção das mulheres), pode-se fazer paralelismo entre os ancestrais portadores de tacapes, uns outros espalhados nos milhares e milhares de anos a se aproximarem da era moderna e a atualidade universal. Pegue-se, colhendo-se o exemplo na complicadíssima orografia cerebral, a França que nos legou, depois de Filadélfia, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão. Liberté, Egalité, Fraternité: “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum”. A verdade do texto é discutível. Os homens, ao nascerem, já perdem uma parte da liberdade. Paralelamente, são absolutamente distintos em direitos. Além disso, na própria geratriz, ou semente, exibem a desigualdade genética advinda, vez por outra, na composição defeituosa da quarta ou quinta geração anterior. Romântico embora, é absolutamente desamparado pela lei de Mendel e muitas outras autenticadas pelo mapeamento do genoma humano. Dentro de tal contexto, todos os homens nascem desiguais. A Declaração mencionada deve ter, com certeza, seu primeiro rascunho escrito com o sangue daqueles que haviam sido e foram submetidos à máquina mortífera criada pelo doutor Guilhotin, sabendo-se que nem mesmo sob aquela lâmina de bordas ensebadas a pretensa igualdade entre os condenados se consubstanciava. Aquele médico, antecessor dos comunistas de hoje, quis nivelar nobres e plebeus: um só corte misericordioso assimilaria a cabeça empoada e a desgrenhada e piolhenta cabeleira do mendicante. Viu-se que nem mesmo isso era possível, pois mendigos tinham o pescoço taurino a poder do esforço em puxar carroças e princesas ou rainhas (leia-se Marie Antoinette) ofereciam à guilhotina pescoços delgados e junções vertebrais pouco reagentes ao ferro nem sempre bem amolado. Perceba-se, então, que nem mesmo a execução é igualitária. Portanto, a Declaração de Direitos surge entremeada nos romances de folhetim. Vêm à reflexão, no entreato, as figuras de Marie Antoinette, George Jacques Danton, Louise Antoine Léon de Saint-Just e Maximiliem François Marie Isidore de Robespierre, decapitados em datas muito aproximadas. Marat escapara da Madame Guilhotina, mas já havia sido justiçado por Charlotte Corday, fanática jacobina que, segundo a história, o colhera enquanto aquele advogado (sempre os advogados) relaxava durante o banho. O assassínio aconteceu, mas as particularidades devem ser postas sob suspeita, pois há notícia, também, de que Marat foi esfaqueado quando, vestindo um roupão, abria a porta à donzela. Os criminalistas sabem que toda morte de homem por mulher guarda seus mistérios…

Daquele sanguinolento antepasto da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão sobram reflexões dramaticamente curiosas sobre conflitos sócio-políticos posteriores. Aqueles personagens morreram moços. Marat era o mais velho, um macho de cinquenta anos desventrado pela sedutora medusa. George Jacques Danton pôs o pescoço na bruxa Guilhotina aos trinta e cinco anos. Saint-Just foi guilhotinado aos vinte e sete. Robespierre perdeu a cabeça, literalmente, aos trinta e seis. Marie Antoinette Josèphe Jeanne de Habsbourg-Lorraine, tia-avó da imperatriz cujo nome identifica, hoje, a estrada de ferro Leopoldina, maltratadas ambas, morreu aos trinta e oito. Um magote de jovens, com certeza, nenhum deles alcançando os quarenta, ressalvado Marat, hábil o suficiente para não perder o pescoço mas ingênuo o bastante para morrer sob a faca da visitante. Num sentido quase psicopático, pode-se procurar semelhança nos conflitos políticos hodiernos, deixando-se de lado as diferenças de idade, porque dificilmente no Brasil um parlamentar chegaria ao posto com vida inferior a quatro décadas. Entretanto, simbolicamente, um ou outro é igualmente guilhotinado, havendo os acusados de corrupção, aqueles envolvidos em comportamentos não éticos, uns poucos sacrificados pela própria ideologia e, finalmente, os próprios manipuladores da engrenagem que deu vida a Madame Guilhotina. Veja-se, nesse caldeirão do diabo, que há similitude abstrata entre o presente e o passado. É bom relembrar frase advinda de Albert Camus: “Somos todos pequenos assassinos”. Acresça-se ao texto um “grand finale”: o Catão de ontem será o guilhotinado de amanhã. Tocante a Charlotte Corday, é esta um indício relevante de que as mulheres podem, seguramente, interferir na vida política da nação. Temos isso na brasilidade moderna, bastando uma visão superficial sobre nosso passado recente. Portanto, é preciso um grau muito grande de prudência no uso do cutelo ferrugento. Os censores hão de se cuidar pois, no fim de tudo, se prudência não tiverem, um assessor qualquer precisará levá-los à utilização de dito espirituoso antes de irem à degola. A propósito, consta que Danton, visitado pelo carrasco que lhe queria cortar os cabelos, teria sorrido ironicamente, dizendo: “– Não precisa usar a navalha, você vai me cortar o pescoço amanhã!”. Fanfarronice de garotão. Aliás, todos os sacrificados eram meninos. Que bacana!

No entretempo, cuidem-se os intervenientes. Não se sabe muito bem quem vencerá a disputa entre o fio da navalha e Madame Guilhotina. O futuro dirá.

* Advogado criminalista em São Paulo há cinquenta e um anos.

** Áudio e vídeo

*** O texto é de única e absoluta responsabilidade do autor Paulo Sérgio Leite Fernandes. O intérprete Gustavo Bayer é apenas o ator.

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