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O Carrilhão da Sé e a Ordem dos Advogados do Brasil

Paulo Sérgio Leite Fernandes

Aconteceu faz muito tempo. Os velhos sobreviventes têm, evidentemente, um passado maior que o futuro. Hoje de manhã, vindo no meio do congestionamento paulista, cometi uma transgressão de trânsito: liguei pequena tela de televisão existente no painel. Na reportagem, um ancião se preparava para completar cento e um anos de vida numa cidadezinha do Amazonas. Era plantador e colhedor de guaraná. Tomava aquilo todos os dias. Não tinha colesterol alto. O coração batia regularmente, ressalvadas as oportunidades, não raras segundo dizia, em que abraçava a mulher, cinquenta anos mais moça que ele. Uma coisa a dar inveja aos mais moços, embora, segundo dizem, uma substância milagrosa já esteja a substituir o pó de chifre de rinoceronte que custava muito caro entre os sheiks árabes e quejandos.

Qual a relação entre o patriarca amazonense, a Catedral da Sé e a OAB? Sinto-me, septuagenário, uma espécie de “Fantasma da Ópera” ou um “Corcunda de Notre Dame” no território místico ocupado pela Corporação dos advogados, uma espécie de holograma em que as imagens viajam de um a outro lugar, sem especificidade. Comecei a advogar, sempre na área criminal, há cinquenta e um anos, contado o tempo de solicitador acadêmico (hoje estagiário). Introduzi-me na política da OAB desde os vinte e três. Já vi tudo lá dentro. Fui conselheiro estadual e federal em várias legislaturas. Assessorei presidentes (os que entravam e os que saíam). Conheço a fundo os pecadões, pecados e pecadilhos da Instituição, melhor talvez do que censuro os meus. De uns tempos a esta data, resolvi deixar aquela madona complicada, pois já era tempo dos guerreiros jovens, valendo os velhos apenas a título de observadores atentos.

Minha inscrição vem de antes da promulgação do Estatuto de 1963, nascendo este, paradoxalmente, enquanto a ditadura se implantava no país. Atravessei, integrando a política da Corporação, todo o período ditatorial, sendo testemunha de que, com todos os seus defeitos, nunca a Ordem dos Advogados do Brasil deixou de ser uma Joana D’Arc, embora ameaçada pelas fogueiras da Inquisição, valendo dizer que resistiu valentemente a todas as tentativas de privação da independência que sempre a caracterizou. Servi no Conselho Federal a vários líderes, a partir de José Ribeiro de Castro Filho, embora com este não me relacionasse oficialmente. Estive próximo, e muito, de Bernardo Cabral, Mário Sérgio Duarte Garcia, José Roberto Batochio e Rubens Approbato Machado. Outros muitos chegaram, mas sem sintonia maior. Em 1980 uma carta-bomba dirigida a Eduardo Seabra Fagundes (filho do outro Seabra, que conheci bastante, ele já muito idoso) explodiu sobre a mesa de Lyda Monteiro da Silva, matando-a. Aquele móvel é hoje, entranhas queimadas, um símbolo posto no átrio da sede da OAB em Brasília. Seguiu-se àquilo, também com explosão desviada para o ventre de um dos terroristas oficiais, o episódio Riocentro. Verberei, com muitos, aquela política insana. Estava no Conselho Federal, inclusive, quando os milicos quiseram apreender, sob o bastão de Mário Sérgio Duarte Garcia, gravações das sessões do Conselho. Obviamente, nada havia a ser apreendido. As fitas estavam em lugar seguro. Aqui em São Paulo, lembro bem, fui “ghost writter” de um ou outro presidente. Cid Vieira de Souza escrevia com muita precisão, mas sequer lhe sobrava tempo para advogar. Incumbia-me de escrever textos mais agressivos, defeito que sempre tive. Recordo-me de frase posta em discurso que ele fez, sem ler antes ou censurar, na instalação de um Ano Judiciário no meio do regime autoritário. Aquilo causou uma confusão terrível, pois juízes, em tempos ditatoriais, nunca, mas nunca mesmo, conseguem livrar a toga do cassetete do soldado. Sucumbem ou deixam de existir (ver o Equador em 2005). O desconforto gerou, certamente, receio de que o Presidente da OAB fosse preso, por minha culpa é certo, nunca muito prudente na verbalização e uso da caneta. No fim das contas, o líder dos advogados paulistas, sempre confiante no seu “Pero Vaz de Caminha da Aldeia”, leu: “ – Daquela sala no 6° andar da Praça da Sé ouço bater todos os dias às 12 e às 18 horas o carrilhão da Sé. E o leve som desafinado de um só sino me lembra todos os dias, às 12 e às 18 horas, o tempo que falta para a redemocratização do meu país”.

Leio nos jornais hoje, 9 de dezembro de 2010, notícia de que aquele maravilhoso conjunto de sinos da Catedral de São Paulo foi limpo e restaurado, recebendo algumas camadas de óleo depois de escovado. É muito bom, mas me trouxe muito séria preocupação com caminhos antes nunca trilhados pela Ordem dos Advogados do Brasil. Aquela matrona severa tem hoje seiscentos mil filhos famintos de liberdade e de revitalização da dignidade. Vê-se o bastonário, pela vez primeira na história da Corporação, a engrossar pretensões de encarceramento de acusados por hipóteses de infrações graves. Paralelamente, o bâtonnier se põe a interferir, em sentido restritivo, na defesa assumida por colegas seus, advogados também, deixando de ser um árbitro atento à defesa das prerrogativas profissionais e fiscal da observância de preceitos atinentes à lealdade com que o Estado-Acusação deve comportar-se. Nunca se observou isto, repita-se, no trajeto da Ordem dos Advogados do Brasil. Espera-se, então, muito cuidado do bastonário-maior da Instituição no trato dos problemas criminais e políticos que transformam a capital da República num centro onde o Estado-Perseguidor e uns poucos advogados debatem a ocorrência ou não de comportamentos infracionais cujas consequências, causas e condições tramitam tortuosamente nos subterrâneos palacianos de Brasília. Aqui, o Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil tem sua atenção e seu destino traçados: ou passa ao futuro como um guardião dos sinos da Catedral da Sé ou será lembrado, sim, como aquele que desvirtuou a vocação antiga, ainda não desmerecida, de protetor do equilíbrio que deve haver entre a acusação e a defesa, não engordando o poder daqueles que pretendem infernizá-la.

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