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O Processo Penal e as modernas tendências restritivas da liberdade

Paulo Sérgio Leite Fernandes

Há uma época na vida do jurista e dos processualistas em geral que permite àqueles já experimentados no trato prático do Direito uma aferição razoavelmente exata da realidade vigente. Afirme-se tal premissa após a captação de fenômenos demonstrativos de haver, não só no Brasil mas no mundo inteiro, uma invasão agressiva aos chamados direitos e garantias individuais, em benefício do denominado direito da comunidade, ou, em se preferindo, da sociedade havida como um todo etéreo mas vigendo a cada experimentação. Embora possa haver contestação – e a contestação é sempre possível –, tome-se como marco inicial da inversão o trágico 11 de setembro de 2001, há uns nove anos, repercutindo aquele horror no universo e provocando, em ondas sucessivas, endurecimento cujos efeitos são apuráveis sem grande esforço intelectual. Poucos anos antes a Itália fora sacudida por assassinato de magistrado encarregado de pesquisar e punir membros da máfia, o caso Falcone. Na Espanha, logo ali, aconteceram atentados terroristas (11 de março de 2004), não se podendo esquecer que Londres também passou por aperto assemelhado, isto em 07 de julho de 2005, tudo num período não superior a quinze anos. Não se fale do Oriente Médio. Aquilo tem noivado permanente com o terror. Mude-se a ideia para a Suécia: agora mesmo, mês de dezembro de 2010, consta que aquela nação se livrou de uma tentativa de retaliação terrorista a algumas charges publicadas sobre o Islã. Volte-se às Torres Gêmeas em Nova York. Os denominados homens bons se devotaram à necessidade de defesa, sendo importante fixar que o Estado, quando levado a tanto, fecha as comportas alfandegárias, aumenta restrições à deambulação e parte para um direito processual penal preventivo, antecipando-se, assim, a possíveis reaquecimentos das atividades violentas. A chamada defesa do Estado é contagiosa. Guiados pela relevância das Torres Gêmeas demolidas alhures, outros países, vizinhos ou não, encetam movimentos análogos de fortalecimento dos patamares éticos. O fenômeno correspondente ao drama concretizado em Nova York é novo, mas os padrões sócio-políticos levando ao enrijecimento estatal são muito antigos, vicejando predominantemente na Europa a partir da pregação do neossocialismo, não se podendo esquecer que Hitler e Mussolini, cada qual a seu modo, foram arautos de doutrina catalisadora de preceito a exigir congregação de esforços da sociedade no sentido de revitalização do país, mas com prejuízo dos direitos do indivíduo enquanto tal. Em suma, o mundo inteiro parece estar a conduzir-se para a postura política em questão, sucumbindo o indivíduo à predominância da sociedade como um todo. O movimento não poupa o Brasil. Saindo ainda de um governo militarista, o país reingressa num outro tipo de supressão das garantias individuais em benefício de uma vontade estatal desmesuradamente forte, num bailado em que o ser humano não tem como resistir, sendo imolado na própria desproporção entre seu esforço individual e os meios de que dispõe a autoridade para coagi-lo. Cuida-se de uma luta cujos eflúvios se concretizam no dia-a-dia, valendo dizer que os sintomas se projetam em todas as vinte e quatro horas. Em síntese, um cinturamento terrível do cidadão, principiando a ofensa na absoluta derruição da privacidade. As agressões à intimidade são metodicamente plenas. Ao lado disso, o Juiz que deveria proteger o cidadão contra o Estado, sendo aquele insignificantemente reagente, se transforma, ele próprio, em instrumento da coação exercida pela autoridade, não conseguindo equilibrar as forças visto que ele, Magistrado, é também instrumento burguês de sufocamento da soberania do homem sob as vestes do Minotauro. Um odor terrível, certamente, não se sabendo qual o fim disso tudo. O cidadão, desnorteado, recolhe alguns bocados distribuídos inconstantemente pelo chamado Poder Público, anestesiando-se enquanto desmetodizado na oposição. Chama-se a isso Democracia, mas pesa sobre todos um negrume sufocante, a sentirem que a liberdade se reduz gradativamente, transformando-se o indivíduo numa insignificante peça dentro de monstruoso jogo presidido, antes, por fator totalitário inserido no contexto temporal, nunca por ideário provindo de criaturas pensantes. Há nisto, é claro, sintoma imitativo tocante ao Brasil. Investe-se contra a chamada criminalidade organizada, por exemplo, mas não se tem sequer local para depositar os encarcerados, sabendo-se que se todos os condenados fossem presos o quarto dos fundos das casas dos juízes não chegaria, nem ele, para acolitar os prisioneiros. Pretende-se, apesar disso, enrijecer os códigos repressivos e reduzir as garantias, fortalecendo-se a investigação e a acusação. No campo do direito privado, os tribunais firmam convênios com empresas privadas encarregadas de humilhação dos devedores, casamento espúrio, diga-se de passagem, sabendo-se que tais Instituições florescem ao lado do aviltamento da dignidade alheia, assemelhando-se àqueles cobradores fantasiados de vermelho tocando a sineta contra a porta dos desvalidos. Resumindo, um tempo apodrecido, produzindo desesperada vontade de reagir, mas sem ferramentas adequadas a tanto. Dir-se-ia que os poucos renitentes são sobreviventes extravagantes de época perdida nos umbrais do passado. Havia no sertão das Minas Gerais criatura vivendo com pouco. Tinha um cavalo, uma espingarda e uma choupana a protegê-lo do frio das madrugadas. Certa vez tentaram prendê-la, pois ultrapassava os limites do seu campo, sabendo-se que não havia cercas. Conseguiram subjugá-la afinal. Perguntaram-lhe, depois, porque resistia tanto, cuidando-se de um só cavaleiro perdido à beira das florestas de concreto. O preso respondeu sucintamente, enquanto abria a camisa e mostrava peito e dorso repletos de cicatrizes deixadas, alhures, por um rolo de arame farpado. Esclareceu que aquilo doía muito e doeria até o fim da sua vida, significando a recordação de restrição ilegítima da sua liberdade.

Romântica embora, a ideia é mais ou menos a mesma. Uns e outros se acomodam, perdem a choupana, o fuzil, o cavalo e a possibilidade de aspirar o ar puro; aqui e ali existem sobreviventes da cerca de arame farpado. Estes homens e mulheres, sim, são perigosos. Podem, quiçá, mudar o destino da nação. Paradoxalmente, os insurrectos de ontem são os poderosos do amanhã. Ou mudaram de lado ou ainda lhes doem as cicatrizes das batalhas de 1970. É um recado direto para a Dilma. Ver-se-á.

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