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Sidney Bortolato se foi – É DOCE MORRER NO MAR

Toda profissão tem acidentes de percurso. Cirurgiões podem enfiar o dedo numa agulha infectada. Bombeiros se queimam heroicamente em incêndios. Pilotos de caça caem com seus aviões descontrolados. Mineiros são soterrados sob toneladas de entulho. Metalúrgicos perdem mãos, dedos e até a vida enquanto lidam nas engrenagens monstruosas. São os chamados acidentes do trabalho, maiores ou menores, mas sempre ameaçando os viventes. Há hipóteses absurdas, é bem verdade, do tijolo desgarrado do frontispício de uma construção, rompendo, embaixo, o crânio de um inocente passante. A vida é assim. E a morte não é diferente, mas a primeira surge, esperada, ao vagido da criança posta no mundo enquanto sai do ventre materno, um milagre da natureza, sim, mas tão natural quanto a visita daquela que se põe no extremo oposto, havendo uma diferença: a criança chega depois de ser feita; a segunda vem fatalmente. Aliás, a própria expressão “fatal” é sinônimo do ato de partir, segundo alguns, para o além e, de acordo com outros, sair em visita a lugar algum. É esse, sempre, o maior mistério cercando a humanidade, nesta última compreendida toda a natureza. Já vi, nas madrugadas de insônia, uma cena acontecida num cercado de proteção de chimpanzés, na África. Um deles morreu. Os outros fizeram um círculo em torno do morto e não permitiam que os tratadores o retirassem do local. Há, então, uma característica inimaginável rodeando os que se vão. Vinícius de Moraes, numa das suas poesias que lembro aos pedaços, acentua em verso extravagante: “– Hei de amar-te até morrer-te”. Coisa esquisita, admite-se, mas compreensível, pois há amores transcendendo a própria morte.

Sidney Uliris Bortolato Alves morreu num acidente de trabalho, enquanto participava de audiência numa pequena comarca paulista. Pode suceder algo assim, ou em Barueri ou na Suprema Corte, mas sempre porque o coração, já sobrecarregado de emoções diárias, bateu mais depressa numa hora qualquer e levou seu dono. Expressão incomum, o coração ser propriedade do homem. Na antiguidade, havia quem afirmasse que o fígado era o proprietário da alma, isso no tempo de Hipócrates. Entretanto, quando a emoção é maior, põe-se a mão no peito, a sentir aquela pequena percussão dizendo que o assunto é sério. Isso vale para os grandes acontecimentos da vida, fazendo parte, inclusive, do cancioneiro popular, nunca valendo a pena esquecer que o coração avisa da sua existência até nas rotineiras artes da paixão.

Lá em Garanhuns, em Pernambuco, há uma capelinha na praia. Os pescadores, quando vão ao mar, rezam na madrugada uma pequena prece a uma Nossa Senhora das muitas em que a Santa se multiplica. Depois, o sol ainda não aparecendo, sobem nas jangadas, abrem o velame e seguem buscando alimento e a linha do horizonte. Nem sempre voltam. Aquilo é frágil como a minha barca (jangada sempre tem nome de mulher). Dizem que é doce morrer no mar, “nas ondas verdes do mar, meu bem, ele se foi afogar. Fez sua cama de noivo, no colo de Iemanjá, é doce morrer no mar”. Em síntese, melhor partir na jangada, durante o trabalho, que ir embora devagar, retardando o desvendamento daquele futuro que só os idos podem explicar. E não explicam.

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