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A Demonização do Processo Penal – Paulo Sérgio Leite Fernandes (13/01/2011)

Paulo Sérgio Leite Fernandes

A “História da Psicologia”, obra de David Hothersall, refere época terrível, entre outras, passada pela humanidade, isso ao tempo da França revolucionária. Viveu naquele tempo, em Paris, um médico que se encheu de renome depois, chamado “Pinel”. Foi o grande reformador da psiquiatria européia. Recebeu tanta nobilização que até hoje, passando-se trezentos e poucos anos, quando se pretende afirmar que alguém “está batendo os pinos”, a expressão usada é “está pinel”.

A introdução chega a contento em ligação com o título. Quando se fala em demonização do processo penal há referência, é claro a tendências político-ideológicas na condução daquilo que se pretende ser a tentativa de apuração da verdade por aqueles que detenham autoridade a tanto.

Não se fale do Projeto de Código de Procedimento Penal remetido pelo Senado, recentemente, à Câmara dos Deputados. Cuide-se da forma pela qual, de certo tempo a esta data e tendo como inicio, à falta de outra medida, a tragédia representada pela destruição das torres gêmeas em Nova York, o mundo todo dito ocidental vem investigando hipóteses de infrações penais, quer as comuns ou aquelas outras vincadas no terrorismo. Dê-se o exemplo de Guatanamo, sob a responsabilidade dos Estados Unidos da América do Norte. Pule-se para o Brasil, um salto grandioso, é claro, mas representando uma espécie de casamento entre os métodos prisionais de lá e de cá, significativos dos nossos chamados presídios de segurança máxima. Sabe-se que a concretização do ideário desse padrão de encarceramento adveio de lei paulista acompanhada por legislação federal, mais tarde concretizada no mundo físico pelo criminalista Márcio Thomaz Bastos, levado este, quem sabe, por uma necessidade que melhor pesaria nos ombros de um persecutor. Entretanto, a vida é assim: nem sempre o cargo público facilita a tendência libertária do agente. Este carrega o comportamento repressivo pelo resto da vida e só o futuro dirá de seus méritos e de suas deficiências. Havia um jurista notável que em vida foi advertido  pelo escriba: “ – Cuidado, deixe no testamento a proibição a que dêem seu nome a um presídio”. O diferenciado criminalista fez ouvidos moucos à previsão. Seu nome se encontra no frontispício de um estabelecimento penitenciário brasileiro. Não se despreze, igualmente, que o patronímico de Nélson Hungria aparece nos jornais em razão das repetidas rebeliões no cadeião assim batizado.

Voltando-se à demonização das investigações atinentes a hipóteses de crimes no Brasil, é assustadora a tendência, hoje verificada, de exposição dos perseguidos à censura popular, como se fazia na França revolucionária à época da declaração universal dos direitos do homem e do cidadão. Ali, Danton chegou à Bastilha acorrentado dentro de uma carroça aberta e ferrugenta que passeava pelas ruelas da capital da França. Mostrado à curiosidade da multidão, recebia no corpo o choque de ovos, tomates, batatas e verduras podres, até ser decapitado por madame guilhotina. Aconteceu isso, segundo consta, diferentemente de Maria Antonieta, que teria sido poupada daquela vergonha. Afirma-se que a multidão  agrupada em torno da infernal máquina de fazer mortos se divertia olhando os movimento ditos involuntários feitos pelas cabeças separadas dos corpos (esgares diversos, piscar de olhos e, às vezes, até um sorriso sarcástico). Os comentadores desse tipo dramático de execução fazem analogia com galinhas servidas à mesa depois de terem os pescoços decepados. O fato é conhecido pelas avoengas ou tias-velhas. Há alternativa de aves voando sem cabeça desordenadamente até que o sangue se esvaísse.

A investigação no processo penal brasileiro ganhou, figuradamente, impulso assemelhado. Mesmo mantendo o constitucionalmente assegurado estado de inocência, os investigados são expostos à execração pública, desprezando-se inclusive o segredo decretado pelo Poder Judiciário. O significado da publicização das investigações é duplo: de um lado, a reputação do acusado, sua possibilidade de sobrevivência, seu conceito interior da dignidade se constituem em requisitos satanicamente destruídos. Na maior parte das vezes, se e quando absolvido, o réu já foi imolado no meio do caminho. De outra parte, a amostragem do cidadão nas páginas dos jornais e nos meios de comunicação em geral, valendo para tanto o concurso insidioso de algumas autoridades, é fator demonstrativo do descrédito em que se pretende colocar o próprio Poder Judiciário, cujos mandamentos são enfrentados nas esquinas.

Dentro de tal  momento histórico, é preciso dizer que uma parte do conjunto encarregado de investigar e punir as hipóteses de crime no Brasil corre o risco sério de se deixar ensandecer por uma espécie de megalomania assemelhada à caça às bruxas da Idade Média, ou mesmo aos tresloucados ideais revolucionários da França de Robespierre.  Acusações provisórias e sujeitas, portanto, a lastreamento no contraditório, são havidas como verdades insofismáveis, enlameando os investigados por meio de noticiário obtido à sorrelfa, tudo no sentido de transformar a suspeita em condenação popular. Dir-se-á que o mundo mudou. De fato, hoje, não há a cerimônia do guilhotinamento físico. Entretanto, a hora moderna consegue ser extremamente surrealista. Mata-se simbolicamente, consumando-se o objetivo com extrema sofisticação. A carroça sanguinolenta da capital francesa é substituída pelas imagens das redes de televisão, sequiosas de noticiário infamante. O carrasco  vestido com o gibão vermelho encontra semelhança naqueles que deixam vazar,  por estradas disfarçadíssimas, notícias correspondentes a fatos não comprovados e postos no papel apenas como pretensões provisórias. Por fim, deixa-se ao populacho o corpo daquele que, na verdade, condenado ainda não fora, mas que é oferecido à turba em derivação dos próprios pecados de cada qual.

Que coisa triste! Competiria ao Poder Judiciário dizer que não pode ser assim, mas um bom contingente dos próprios Juízes parece comprazer-se em examinar, ao lado do patíbulo, as expressões automáticas dos lábios, olhos e musculatura das cabeças decepadas. Convoque-se outra vez o cientista Pinel, a ver se teria alguma sugestão a oferecer.

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