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Um presidente ladrão de caneta (ou “De grão em grão a galinha enche o papo)

Paulo Sérgio Leite Fernandes

Pegaram o presidente da República Tcheca, Václac Klaus, subtraindo ardilosamente uma caneta posta num estojo sobre a mesa que dividia com outro político numa palestra ou conferência realizada no Chile. O homem, disfarçadamente, escondeu primeiro o objeto debaixo da mesa. Depois, sorrateiramente, o enfiou no bolso esquerdo do paletó, abotoando-o em seguida. Aquele comportamento foi todo filmado, correndo o mundo depois, constando que a cena, posta na “internet”, recebeu mais de quinhentas mil visitas.

O fato não é tão raro assim. Há gente muito importante que subtrai coisas com e sem muito valor. Já tirei da cadeia, meio século atrás, senhora respeitadíssima que furtava calcinhas (v. “Marnie, confissões de uma ladra”). Existe, inclusive, recentíssima crônica de Roberto Delmanto contando a epopeia de quadros sumidos e localizados, mais tarde, sob a cama de herdeiro insuspeito (v. crônica “Os quadros”). São os chamados “pequenos homicídios”, de Albert Camus. Não existe criatura infensa a tais tentações, umas consumadas, outras não. Eu mesmo, ainda não quarentão, enquanto defendia na auditoria de guerra dois meninos acusados de atentado a bomba, felizmente frustrado, contra a cavalaria do então coronel Erasmo Dias, “esqueci” de devolver a caneta do militar fardado presidente da Corte onde se processava o julgamento (era um escabinado, ou tribunal híbrido). Assinei a ata e trouxe comigo o objeto que, por sinal, tinha cor verde-oliva. Ainda o tenho, em lembrança da absolvição dos moços (os militares quiseram fazer a experiência com duas gotas dos líquidos explosivo na sala secreta. Foi uma fumaceira só. Nessa altura, eu já estava na rua, por via das dúvidas). É crime de bagatela muitas vezes prescrito. O dono da esferográfica já morreu. Não deve ter percebido e, se percebeu, não ligou porque, como explicou o presidente da República Tcheca, era uma caneta vagabunda (não tanto assim, pois estava dentro de um estojo). Procurando bem, todo mundo tem perebas. No meu caso, tenho o consolo do companheiro famoso. Se um presidente pode furtar canetas, o cidadão também pode. O assunto se complica se o Chefe de Estado, entusiasmado, parte da pequena infração para os grandes crimes enlaçados nas filigranas dos empreendimentos oficiais. É aquela velha história: de grão em grão a galinha enche o papo. É preciso parar na caneta e em outras insignificâncias, enquanto é tempo. Aquilo vicia.

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