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Anotações sobre crimes passioanais (ou “O caso Pimenta Neves”)

Paulo Sérgio Leite Fernandes

O jornalista Pimenta Neves foi recolhido definitivamente ao cárcere, onze anos após o fato pelo qual o condenaram a quinze anos de reclusão no Tribunal do Júri de Ibiúna. Reclama-se a boca miúda contra a demora no esgotamento dos recursos aptos a alongar o trânsito em julgado da condenação. Segundo noticiário posto nos jornais, a justiça deveria ser muito mais rápida, permitindo definição dos aspectos jurídicos no processo movido ao antigo diretor do jornal “O Estado de São Paulo”.

Não se fale do mérito do conflito judicial em questão. O que houve ou deixou de haver se encontra nas centenas de páginas do processo criminal agora em execução. Comente-se apenas, em breve relatório, o fato de o jornalista estar sendo impiedosamente vergastado pelos próprios companheiros versados na arte de escrever, editar e imprimir jornais, estendendo-se a tortura moral às emissoras de televisão. Ali, conhecendo a necessidade de satisfazer a curiosidade popular, os órgãos de divulgação filmaram e refilmaram a captura do velho (e velho é), mostrando-a à cidadania. Esta, ávida na satisfação de anseios nem sempre bem explicados, não se comportou elogiosamente em relação ao prisioneiro. Insultou-o bastante. O pai da vítima, agora entrevado, desfila uma raiva compreensível, porque lhe mataram a filha, debitando-se ao assassino os achaques exibidos pelo genitor. Pai e mãe da ofendida sentem, diga-se bem, as consequências do drama e da idade, porque a doença é própria da velhice, agravando-se, quiçá, com a tragédia. A proximidade maior da grande bruxa cobra juros ao passado. É assim. Todos têm seus dramas. Faz parte da vida e da morte. No fim das contas, alguém disse na manhã de hoje, com seriedade até surpreendente porque o tema foi tratado num programa sanguinolento da televisão, que qualquer um, mesmo o cidadão honesto, pode cometer a criminalidade dita violenta. No meio do programa, apareceram cenas de outros homicídios praticados, inclusive, por magistrado e promotor de justiça, a título de exemplo no sentido de que mesmo os equilibrados podem fazer desatinos. É mesmo assim. O ser humano é sofisticadíssimo conjunto de atributos abstratos, físicos e químicos, ligando-se aquilo tudo em milhões de feixes cujas funções ainda não se conhece bem, bastando afirmar que há, no cérebro, uns cem bilhões de neurônios trabalhando com as sinapses, numa combinação que tem algo de elétrico. Enroladas nisso tudo há secreções vindas da tireoide, do timo, da epífise, da hipófise, da amígdala, da pineal, da pituitária, do sistema renal enfim, trilhando o contexto nas endorfinas, ditas dopaminas, ocitocinas e insumos que tais. Assim, quando se fala no magistrado que matou a esposa e lhe decepou as mãos para tentar impedir a identificação da defunta, ou do advogado diferenciado, lá atrás, assassinado pela mulher (Stélio Galvão Bueno), ou do jurista genebrino autor do “crime do punhal marroquino”, é preciso pensar no autor como se fora uma das máquinas mais complexas já produzidas no universo conhecido (talvez a mais sofisticada) porque, além dos hormônios descritos, há a perspectiva do pensamento inteligente, constando que só o ser humano assim se descreve. De raciocínio em raciocínio, dentro do fenômeno chamado “associação de ideias”, já se pode voltar no tempo de apreciar, antes da vigência do Código Penal de 1941, a chamada “privação de sentidos”, responsável, certamente, pela absolvição de muitos homens e mulheres que mataram por paixão. Dá-se a tal fenômeno, na medicina especializada, o nome de “obcecação psicoemotiva” ou “paronimia rudimentar”. Em outros termos, paixão amorosa levada ao extremo, aquela mesma cantada nas tragédias gregas e mesmo na literatura romântica moderna. Afirmam alguns especialistas (ou todos?) que a paixão amorosa é igual a outra qualquer, caracterizando obsessão psiquiátrica. É doença. Amor e ódio, duas vertentes antonímicas substituindo-se num bailado satânico, um tomando o lugar do outro. Que coisa horrível e, ao mesmo tempo, que fenômeno sublime, a exemplo de alguns chamados animais inferiores monogâmicos. Afirma-se que o lobo tem uma só fêmea e morre por ela. Lembro-me de uma crônica lida aos quinze anos de idade chamada “Lobo-Rei, o que morreu de amor”. Vi outro dia, num desses canais de televisão especializados em retratar vida selvagem, a descrição de cena em que um cão puxador de trenó, nas geleiras do Ártico, se recusava a abandonar a fêmea moribunda, aguardando então até que o socorro chegasse. No entremeio, lambia as feridas da acidentada. Isto, obviamente, é amor. Afirma-se, quanto aos bichos e mesmo em relação a nós, que a dedicação amorosa tem ligação íntima com os chamados “feromônios”. Para quem não sabe – e todos sabem – as paixões se entrelaçam nos odores de cada um. Dir-se-á haver uma simplificação grotesca na assertiva mas, se verdade não fosse, o perfume contido no ventre do almíscar não seria vendido hoje, a peso de ouro, para base de fabricação de algumas seivas adoradas pelas mulheres bem postas (v. Arpège).

Já se vê que a explicação para o homicídio passional é extremamente complexa, não se pretendendo justificá-lo, é claro, mas querendo dizer que o paroxismo amoroso se transforma, muita vez, em destruição do objeto amado, para que não mais pertença a alguém. Não é à toa que na chamada animalidade de baixa estirpe os próprios jacarés machos se comportam à maneira de dançarinos de guerra enquanto buscando o acasalamento com fêmeas postas nas proximidades. E também não é sem razão que espécies outras pavoneiam as caudas enquanto buscam seduzir companheiras de ocasião. Faz parte. O louva-deus é morto depois da fecundação (ocasionalmente durante). Determinadas espécimes de aracnídeos recebem o codinome de viúvas negras. Matam o macho. Homens e mulheres, embora raramente, chegam a tanto na oscilação entre o amor e o ódio gerado pelo abandono.

Pimenta Neves deu dois tiros na moça. Ele próprio não sabe a razão de o ter feito. Privou-se dos sentidos. Paga preço caro. São quinze anos de cadeia, não valendo dizer que será posto em liberdade daqui a um biênio. É um velho. Aos setenta e quatro anos, os pecados já lhe pesam muito mais. Morre no presídio ou na rua, depois, carregando a mutilação espiritual do desatino. Curiosamente, a mesma raiva que o enlouqueceu é aquela contagiando os parentes, amigos e mesmo os indiferentes postos em volta da mulher assassinada. Se pudessem, dilapidariam o agressor. Bastaria apenas uma palavra de ordem. No fim, seria o “olho por olho, dente por dente”, a justificar o costume perdido em priscas eras. Houve, certa vez, caso análogo em que o homicida, arrependido, pôs o cano da arma na boca, entregando-a a parente da vítima, pondo-se à mercê da vingança. Há quem puxe o gatilho…

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