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Litigância de má-fé e fraude processual

Luiz Carlos de Arruda

Proponho-me a analisar os institutos da litigância de má-fé do Processo Civil e a Fraude Processual do Direito Penal.

Faço-o porque tenho observado nos processos civis que os operadores de direito, ou operários do direito, como querem alguns, não tem se valido desses institutos como deveriam ser usados. O primeiro como forma de sanção pela ímproba conduta processual e o segundo como forma de “castigo” em observância da regra da política criminal do país.

Para fazer essa análise há de se ter, em primeiro lugar, um conceito básico acerca do que seja fraude civil e fraude penal.

Em primeiro lugar, são unânimes os doutos, no sentido de que existe perfeita identidade entre a fraude que integra o delito de estelionato e o dolo que vicia os contratos de caráter econômico.

Todos os conceitos de fraude equivalem à malícia, ao engano dirigido a um aproveitamento injusto para si ou para outrem. Em nenhum outro ponto, dizem os estudiosos, se revela tão nitidamente, como no caso da lesão patrimonial por fraude penal, a conexão entre o direito civil e o direito penal. Por isto a pergunta que fazem muitos: existe um ilícito civil não coincidente com o ilícito penal?

Esta pergunta vale no âmbito da filosofia do direito, mas não vale no campo do direito positivo, porque aí intervém a política criminal do país para exacerbar neste ou naquele caso o “castigo” que se imporá pela norma.Todavia, quer seja no direito penal, quer seja no direito civil, haverá sempre uma reprimenda, um reproche, em desfavor da conduta que se alicerça na fraude, quer processual penal, quer para tipificar a litigância de má-fé.

Dispõe os artigos 14 do CPC que:

“Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo:

I – expor os fatos em juízo conforme a verdade;

II – proceder com lealdade e boa-fé;

III – não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento;

IV – não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito.

V – cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final.

Parágrafo único. Ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB, a violação do disposto no inciso V deste artigo constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não superior a vinte por cento do valor da causa; não sendo paga no prazo estabelecido, contado do trânsito em julgado da decisão final da causa, a multa será inscrita sempre como dívida ativa da União ou do Estado.”

Pelo referido artigo há uma obrigatoriedade no sentido de que partes, auxiliares do juízo, peritos, assistentes, litisconsortes, opoentes, observem sempre o princípio da lealdade e da boa-fé. Isto para o processo, porque para os atos exógenos, há de se observar não essa regra, mas aquela outra do artigo 422 c/c artigo 113, ambos do Código Civil, que exige o respeito pela boa-fé objetiva no trato das partes e seus negócios.

O princípio da verdade real também deve ser observado, assim como o princípio da proibição da prática de atos contraditórios, ausência de alegação da própria torpeza, não produzindo provas ou atos inúteis e cumprindo com exatidão os provimentos mandamentais de maneira a efetivar as ordens do juízo, quer de natureza antecipatória, quer de natureza final.

É óbvio que esses embaraços a efetivação dos provimentos judiciais se referem a embaraços injustos, procrastinatórios, mas nunca àqueles exercícios de atos processuais que as partes podem usar com base no devido processo legal e a garantia constitucional da ampla defesa e dos meios a ela inerentes. Daí porque entendo que havendo recurso a ser interposto não há abuso que justifique qualquer condenação.

Tudo se resume ao cumprimento do dever de lealdade, boa-fé e de observância da verdade, bem como, na maneira formal de manifestação em juízo com base nesses princípios. Esta é a ideia contida no CPCivil, por exegese do artigo 14. Não se está aqui a mencionar o dever da parte contida no artigo 340, no artigo 445, II, e ainda, artigos 599 e 600, todos do Código de Processo Civil.

São deveres outros, da parte e seus procuradores, segundo o mesmo estatuto processual, aqueles do artigo 15, 416 §1º, e, 446, II, e parágrafo único, as proibições do artigo 134, parágrafo único, e, finalmente, aquele dever do artigo 161 do CPCivil que trata da correição intrínseca dos autos do processo.

Não contente o Código de Processo Civil com o enunciar de princípios e deveres das partes e de seus procuradores, bem como dos auxiliares do juízo, terceiros intervenientes, opoentes, etc., etc… afirma o mesmo Estatuto, quase em repetição do artigo 186 do CCivil[1], em seu artigo 16 que: “responde por perdas e danos aquele que pleitear de má-fé, como autor, réu, ou interveniente”.

Legislando como legisla, o Código de Processo Civil exclui da pecha de litigância de má-fé todos os auxiliares do juízo e outros que não sejam aqueles do rol do artigo 16, mesmo a despeito de, no artigo 14, impor como dever “da parte e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo” a observância daqueles princípios. Deduz-se daí que o legislador escolheu aqueles que podem ser dados como litigantes de má-fé, ainda que as obrigações de observação dos princípios das regras éticas e morais, etc., serem impostas a todos “aqueles que de qualquer modo participarem do processo”.

Importante frisar que o Supremo Tribunal Federal, por seu Pleno, conforme RF 374247 e Boletim da AASP nº 2391/3257, julgou ADI constando do Acórdão que: “Impugnação ao § único do artigo 14 do CPC, na parte que ressalva os advogados, que se sujeitam exclusivamente ao Estatuto da OAB, da imposição de multa à obstrução à justiça. Discriminação aos advogados vinculados a entes estatais, que estão submetidos a regime estatutário próprio da entidade. Violação ao princípio da isonomia e ao da inviolabilidade ao exercício da profissão. Interpretação adequada, para afastar o injustificado discrímen. ADI julgada procedente para, sem redução de texto dar interpretação ao § único do artigo 14 do CPC conforme a CF e declarar que a ressalva contida na parte inicial desse artigo alcança todos os advogados, com esse título atuando em juízo, independentemente de estarem sujeitos também, a outros regimes jurídicos.”

Também o STJ por sua Sexta Turma, em sendo Rel. o Ministro Nilson Naves, julgou a matéria do parágrafo único do artigo 14 do CPC assim ementado seu acórdão:

“EDcl nos EDcl no AgRg no AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 392.932 – EMENTA

Primeiros embargos de declaração, reputados protelatórios.Imposição de multa à parte e ao seu procurador. Alcance do art.14, parágrafo único, do Cód. de Pr. Civil. Exclusão da sanção imposta ao procurador. Prequestionamento de matériaconstitucional. Impossibilidade.

1. A ressalva contida na parte inicial do parágrafo único do art.14 do Cód. de Pr. Civil “alcança todos os advogados”, inclusiveos procuradores públicos, sujeitos ao regime próprio do entecontratante.

2. No caso, conquanto tenham sido reputados protelatórios osprimeiros embargos de declaração, não tem cabimento aaplicação da sanção ao advogado, o que impõe a exclusão dacondenação imposta ao procurador do Estado de São Paulo.

3. Não há falar em prequestionamento de matéria constitucional.De um lado, porque configura verdadeira inovação; de outro,porque não compete ao Superior Tribunal, neste âmbito,examinar questão de tal natureza.

4. Novos embargos de declaração: os primeiros, acolhidossomente para o fim de se afastar do procurador a condenação à

multa. Os segundos, rejeitados.”

Essas normas não se aplicam aos advogados, por exclusão da própria norma.

Certo é que, retornando a questão das fraudes e a conexão entre o direito civil e o direito penal, pode-se afirmar que essa matéria vem sendo discutida ao longo de toda a história do direito ocidental. Assim, enquanto a maioria aceita o caráter unitário do injusto e negam a distinção entre ilícito civil e ilícito penal, outros afirmam que se distinguem em alguns fatores, tais como, consequências, sanções, formas de combate, etc, etc…

Enquanto o Prof. Luiz. A. Bramont Arias[2] afirma que:“el delito, como la infracción civil, caen en el ámbito cómun de lo injusto culpable; o sea, que lo injusto civil administrativo o penal tienen un mismo origen y sólo se separan al llegar a las consequencias. Ricardo C. Nuñez, expresa que “debe sostenerse firmemente el concepto de la unidad de la antijuridicidade en todo el campo del derecho, sin distinción de sus temas. Un hecho es o no es antijurídico en si mismo, sin que pueda serlo para una rama jurídica y no serlo para otra.Esto, sin perjuicio de que siendo antijurídico el hecho, produzca efectos en una de ellas y en otras no;…”

Outros apresentam supostos critérios distintivos para separação dessa matéria. Entre eles Nélson Hungria que preconiza essa distinção e a divide em três classes de critérios: subjetivos, que só cuidam da intenção do agente; objetivo, que se assenta sobre a natureza dos meios empregados; e mistos, usam do sistema eclético ou intermediário. Também outros sustentam que na fraude civil prepondera o ânimo de lucro enquanto que na fraude penal, o agente se propõe principal ou exclusivamente a lesão do patrimônio alheio.

Essa tese última é criticada inclusive por Nélson Hungria, que afirma que, é manifesta a precariedade desta distinção porquanto o ânimo de lucro nem sempre atenua o indevido aproveitamento porque o interesse no lucro é o melhor disfarce da astúcia do agente.

Já se discutiu acerca dos artifícios empregados na fraude processual que, no Brasil, se acham tipificados no artigo 347 do Código Penal. Já se discutiu se tais artifícios alcançam ou não a enganar a suposta vítima. Rechaça-se qualquer distinção entre artifício simples e grosseiro, ou artifício sutil, afirmando-se que quando o artifício conduziu a enganar e a prejudicar efetivamente a vítima, é o que basta para que seja delituoso, já que entre as más ações do culpado, pode também incluir precisamente a eleição como vítima de um individuo tão crédulo e idiota que ainda a mais patente impostura poderia influenciar o seu ânimo.

O artigo 347 do CPenal assim dispõe:

“Art. 347 – Inovar artificiosamente, na pendência de processo civil ou administrativo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de induzir a erro o juiz ou o perito:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Parágrafo único – Se a inovação se destina a produzir efeito em processo penal, ainda que não iniciado, as penas aplicam-se em dobro.”

O objeto material é a fraude operada com a artificiosa inovação que pode se dar por alteração, modificação, substituição, deformação, subversão, relativamente ao “estado de lugar, de coisa ou de pessoa”. Essa enumeração é taxativa. Nossos tribunais, por exemplo, na hipótese de pendência de execução e venda de bens, entende não caber a aplicação do artigo 347 do Código Penal, mas sim aquele outro delito, do artigo 179 do mesmo Estatuto que é o da fraude à execução.

Alberto Silva Franco e Rui Stoco, coordenando o Código Penal em sua interpretação jurisprudencial, em 7ª edição, Revista RT, vol. 2, pág. 4201 até 4205, analisam com a proficiência de sempre todas as hipóteses dos julgados nacionais. Em razão de ser delito formal que se consuma no momento e no lugar em que se completa a inovação artificiosa, não há como admitir-se a hipótese de tentativa. Autores outros, no entanto, afirmam a possibilidade da tentativa porquanto inovar é fraude e o ato da fraude admite fracionamento. Na execução, se interrompida por motivos alheios à vontade do agente, porque não se poderá dizer tentada à inovação?

Heleno Fragoso, segundo Alberto Silva Franco, admite a tentativa.

O que se tem notado nos procedimentos judiciais cíveis, é a tentativa de ludibriar o juiz, enganá-lo, com o intuito de obter a prestação jurisdicional gratuita, ou, assistência judiciária gratuita, onde a vítima, além do Estado, é também a parte contrária, e porque não dizer, até o advogado do ex adversus por afastamento de recebimento dos honorários advocatícios em face do art. 26 do CPC.

A matéria é de ordem pública, mas, não obstante isso, os juízes brasileiros não usam determinar a remessa de cópia desses requerimentos para fins do artigo 40 do Código de Processo Penal. Já existe jurisprudência dentre os arestos nacionais que admite a hipótese de consumação do delito pelo fato da fraudulenta alegação de miserabilidade.

Em qualquer das hipóteses, quer da inovação artificiosa, quer do uso de outro engodo ou forma de engano, haverá sempre a figura do conseguir para si ou para outrem a vantagem ilícita, indevida, ou inapropriada, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento, em detrimento de patrimônio alheio, de que trata a figura maior do crime contra o patrimônio.

A versão do artigo 347 do Código Penal envolve o engano aí já do juiz ou do perito. A ofensa é maior, atenta inclusive contra a Administração da Justiça. Naquele, o delito é material, neste, é formal. Para análise do caso sob exame, é importante que seja observada a forma da ação do litigante de má-fé e as consequências de seus atos. Há ou não prejuízo material? Resta ou não apenas a questão do mau julgamento objetivado pelo ímprobo litigante?

Aliás, o próprio Nélson Hungria em sua obra “Comentários ao Código Penal”, vol. 9, Forense – Rio de Janeiro, 1959, pág. 500, com a percuciência de sempre, afirma, quando comenta a fraude processual: “inspirado no artigo 374 do Código Italiano, o dispositivo visa a coibir os artifícios tendentes ao falseamento da prova e, consequentemente, aos erros de julgamento, seja em favor, seja em prejuízo de qualquer dos interessados. O sujeito ativo, na espécie, é, notadamente, o improbus litigator (muitas vezes, com a coparticipação de inescrupuloso advogado)”.

Aí está! A fraude processual é o delito do litigante de má-fé. Não basta ao agente que atente, ele, contra as regras do processo civil. Vai a mais. Quer “inovar artificiosamente” para enganar o juiz ou o perito, mas sempre, com o objetivo de obter julgamento errôneo, em virtude da má-fé de que se acha imbuído nos atos que pratica no processo civil ou administrativo pendente de solução judicial ou de perícia judicial.

Não interessa se o juiz ou o perito tenha sido enganado. Basta a inovação artificiosa quanto aos numerus clausus da espécie legislada. Trata-se de enumeração taxativa, sob pena de inexistência, da não tipificação do delito, sem que por isto, no entanto, tenha que ser dado como isento da pena do litigante de má-fé lá na esfera civil. Assim como o juiz do cível não pode imiscuir-se na esfera penal para prolatar sentença que comine pena ao agente, em virtude do parcelamento de jurisdição, também o juiz criminal não poderá reconhecer a litigância de má-fé da esfera civil.

Todavia, a partir da Lei 11.719/2008, o juiz da jurisdição penal, pela alteração que houve do artigo 63 e seguintes do Código de Processo Penal, que trata da Ação Civil, pode sim reconhecer na sentença penal a ocorrência da litigância de má-fé para fins de determinar o valor a ser fixado nos termos do inciso IV do caput do artigo 387 do mesmo estatuto penal.

Realmente, dispõe o artigo 63 e seguintes do Código de Processo Penal que:

“Art. 63.  Transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros.

Parágrafo único.  Transitada em julgado a sentença condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do inciso IV do caputdo art. 387 deste Código sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido.(Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

Art. 64.  Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, a ação para ressarcimento do dano poderá ser proposta no juízo cível, contra o autor do crime e, se for caso, contra o responsável civil.  (Vide Lei nº 5.970, de 1973)

Parágrafo único.  Intentada a ação penal, o juiz da ação civil poderá suspender o curso desta, até o julgamento definitivo daquela.

Art. 65.  Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

Art. 66.  Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato.”

Ora, se o Código de Processo Penal, determina que o juiz exarador da sentença criminal possa fixar nos termos do inciso IV do artigo 387 do mesmo código, como reparação de dano independentemente da liquidação para apuração no juízo cível, contra o autor do crime cível, e, se for o caso contra o responsável civil, não há como não se admitir possa o juiz ter, para fins de arbitramento do dano, levado em consideração, em qualquer processo criminal, a hipótese de litigância de má-fé do agente criminoso, desde que, concomitantemente exista um processo civil onde, por conexão, continência ou prejudicialidade interna ou externa, a matéria decidida no crime se tenha constituído como forma de manifestação do improbus litigator do agente naquele processo civil.

De fato, após a edição da Lei 11.719/2008, assim ficou disposta a matéria do artigo 387 do Código de Processo Penal:

“Art. 387.  O juiz, ao proferir sentença condenatória: (Vide Lei nº 11.719, de 2008)

I - mencionará as circunstâncias agravantes ou atenuantes definidas no Código Penal, e cuja existência reconhecer;

II – mencionará as outras circunstâncias apuradas e tudo o mais que deva ser levado em conta na aplicação da pena, de acordo com o disposto nos arts. 59 e 60 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal; (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008).

III – aplicará as penas de acordo com essas conclusões; (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008).

IV – fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido; (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008).

Não se olvide que detendo, agora, os poderes que detém o juiz criminal, especialmente com as alterações da Lei 11.719/2008, poderá ele, em sendo provocado pela vítima, analisar a hipótese de que aquela tentativa de inovar artificiosamente no processo civil também compõe parte do dano do litigante civil prejudicado pelas consequências da conduta civilmente ilícita do criminalmente apenado.

O sobrestamento do feito civil por prejudicialidade externa está legislada no artigo 110 do Código de Processo Civil, como faculdade do Juiz, em face da existência do procedimento penal.

Essa matéria deve ter melhor estudo. A vantagem para o afastamento da fraude nos processo é evidente. O que se tem observado nos processos civis é que, tanto particulares, como grandes empresas de várias naturezas e atividade, intentam ações temerárias no foro cível. Se obtêm o ganho de causa levam às vezes a parte contrária às raias da insolvência. Todavia, se não obtêm o ganho de causa, também não têm reproche quanto a sua conduta. Fica a valer então apenas a tentativa de levar vantagem, sem qualquer castigo ou reprimenda, tudo porque, com a departamentalização do direito (civil, penal, administrativo, trabalhista, ambiental, fiscal, etc., etc…) os juízes e advogados não se veem preparados para a visão macro do direito.

Desta maneira, então, o autor de grandes ações, contidas nas mesmas temerárias condutas, ou exequente de fantásticos valores obtidos mediante prévia coleta de documentos em branco, como temos visto acontecer, não tem risco, nem crítica, pela audácia, pela temerariedade das medidas interpostas, ou até das defesas desenvolvidas.

É o célebre: “Se colar, ganho eu. Se não colar, fica do jeito que deveria estar”. Pode?

Para ser fiel ao leito da matéria, impõe-se que se analise a questão da boa-fé exigida no Código de Processo Civil, e também, no Código Civil, pelo seu dispositivo do artigo 422. O artigo 422 dispõe que:

“Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”

Trata-se de uma parcial inovação do Código Civil de 2002. Imagine-se: inovação acerca da boa-fé e da probidade!

Tito Lívio, aquele cronista da história de Roma, registra quando trata do 2º Rei de Roma -Numa Pompílio – que ele rei, vinculou as regras do direito romano à religião de seus deuses. Conta-se que viúvo, teve como esposa então, Egéria, ninfa que vivia numa gruta nas proximidades da prístina cidade das Sete Colinas.  Registra o cronista[3]:

“(3) Em mais de uma ocasião, sem qualquer testemunha, e como que se ali se dirigisse a conferenciar com a deusa, Numa retirava-se para um bosque, atravessado por uma nascente de águas inexauríveis brotando do fundo duma obscura gruta. Esse bosque foi por ele consagrado às Camenae, porque ali tinham conselho com a sua esposa Egéria. (4) A Boa Fé também teve um templo a ela exclusivamente consagrado. Numa ordenou que os sacerdotes deste templo aí fossem transportados num carro coberto, tirado por dois cavalos, e que eles usassem, durante as cerimónias, a mão coberta até aos dedos, querendo com isso significar que a boa fé deve ser protegida e que a mão é dela o símbolo e a sede. (5) Instituiu ainda muitos outros sacrifícios, e os locais destinados à sua celebração receberam dos sacerdotes o nome de Argei. Mas a mais formosa, a maior das suas obras, foi a de haver conseguido manter, ao longo de todo o seu reinado, a paz e a solidez das suas instituições.”

Então, o direito brasileiro legislou acerca da boa-fé objetiva em seu artigo 422, no ano de 2002, enquanto que a boa-fé, em toda a sua extensão, já era eleita como deusa dos romanos e a ela foi dedicado um templo e um bosque. Alguém se antecipou por demais, ou outro custou a entender da coisa…

Desta forma, sendo como é, a boa-fé, inerente ao respeito aos direitos de outrem, à observância da verdade, à observância da regra de ouro do Cristianismo que se constitui no “não faça a outrem o que não quer que lhe seja feito”, pode ela ser dividida em dois critérios. O primeiro, da boa-fé subjetiva, diz respeito aos dados internos, fundamentalmente psicológicos, que se referem diretamente à intenção do sujeito, em seu modo íntimo de ser. Enquanto que, por outro lado, a boa-fé objetiva se compõe de um conjunto de deveres exigidos nos negócios jurídicos, nos contratos, pautando conduta dos contratantes com respeito à honradez, honestidade, probidade, decência.

O Código Civil de 1916 se preocupava apenas com a boa-fé subjetiva. Segundo observação do internauta José Fernando Simão, in www.professorsimao.com.br, essa dicotomização da boa-fé pode ser assim vista:

“A boa-fé subjetiva é aquela ligada a uma avaliação individual e equivocada de dados da realidade. Significa que o sujeito tem ou não ciência de algo. trata-se de um estado de consciência. É chamada pelos alemães de boa-fé crença (Gutten Glauben).

A boa-fé subjetiva se opõe à má-fé e já estava disciplinada pelo Código Civil de 1916. Assim, é considerado possuidor de boa-fé para fins da indenização das benfeitorias, aquele possuidor que desconhecia os vícios da posse. Também, é considerado cônjuge de boa-fé para fins do casamento putativo aquele que desconhece o impedimento matrimonial apto a tornar o casamento contraído nulo ou anulável. A ciência do alienante quanto ao vício oculto do bem e o surgimento do dever de indenizar está ligada ao estado de consciência, e, portanto, à boa-fé subjetiva. Essas noções contidas no Código Civil de 1916 a respeito da boa-fé subjetiva são também reproduzidas no novo Código Civil.

Já a ideia de boa-fé objetiva é uma regra ética de conduta. Tem um caráter normativo e se relaciona com o dever de guardar fidelidade à palavra dada. É a boa-fé lealdade (Treu und Glauben). É a ideia de não defraudar a confiança ou abusar da confiança alheia. Não se opõe à má-fé e não tem relação com a ciência que o sujeito tem da realidade.”

Desta maneira, tem-se como certo que qualquer manifestação usando de engodo por qualquer das partes tipifica ato ilícito. Ora o Poder Público comina pena, ora não comina, mas, apenas cria sanção civil, como é o caso dessas duas figuras aqui discutidas.

A sugestão é que os operários do Direito se preparem, porquanto a observância dessas circunstâncias foi a forma que o legislador encontrou para coibir atitudes como a dos artigos 14, 16, 17 do Código de Processo Civil e aquela outra do artigo 347 do Código Penal Brasileiro.

Esta manifestação não pretende nem polemizar nem resolver de um todo a questão. Pretende apenas, repita-se, lembrar àqueles interessados que a lei fornece para o Judiciário meios de coibir atos atentatórios à boa-fé e por que não dizer até à dignidade da Justiça, na busca incessante de afastar do meio judicial a coisa julgada fraudulenta.


[1]“Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito ou causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”

[2]Artigo da Enciclopedia Jurídica Omeba, Tomo XII, pág. 692, ed. Driskill S.A. – Buenos Aires.

[3]Livro I – Das origens remotas ao fim da monarquia, História de Roma, escrita por Tito Lívio.

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