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A “Marcha da Maconha” e suas implicações – O Supremo é corajoso

Paulo Sérgio Leite Fernandes

Quando eu era mocinho, ninguém falava em “crack”, “LSD”, “ecstasy” e outros produtos largamente difundidos hoje, constituindo negócio muito lucrativo, agora, nas denominadas organizações criminosas. Na esquina da minha casa havia um pequeno traficante de maconha chamado “Juquinha”. Tinha lá seus trinta e poucos anos e era, seguramente, uma extravagância na região. A molecada o olhava com uma sorte qualquer de admiração e pavor. Além de vender o produto, o rapaz era viciado. Quando em estado de transe, à noite, costumava bater com a fronte num poste das cercanias, a ver se a luz se apagava. “Juquinha” descobrira que a lâmpada de um dos mastros estava frouxa. Fingia, então, contato violento da testa com o poste, mas na verdade batia mais embaixo com a mão aberta. Dava-se o milagre. O pedaço da rua ficava às escuras. A garotada entendia, então, que aquela consequência era o produto místico da erva que o rapaz traficava.

Aos setenta e cinco anos de idade, devo dizer que nunca fumei um baseado.

Hoje vetusto, quase um ancião, poderia admiti-lo abertamente. Já aceitei pecadilhos outros. Não faz mais diferença. Mas não fumei não. Há alguns importantes políticos por aí aceitando a experiência, no passado, é claro.

Conheci, mais tarde, Cesário Morey Hossri, o introdutor do “LSD” no Brasil. Eu já era advogado razoavelmente bem posto e tive uma causa qualquer em que o ácido lisérgico estava intrometido. Cesário havia recebido uma sorte de autorização para lidar com aquilo. Fiquei sabendo que o “LSD” provinha do centeio, ou de um de seus componentes. Entendi, assim, a razão de as chamadas “bruxas” da Idade Média terem sido queimadas e exorcizadas pelo povaréu, sabendo-se que haviam sido impregnadas enquanto trabalhavam nos celeiros. Mais adiante escrevi um livro chamado “Tóxicos”, opúsculo posto no mundo enquanto, pela única vez na vida, espero, estive doente. Queria escrever um livro antes de morrer. Saiu um negócio muito esquisito. Impresso depois que convalesci, dei coautoria ao datilógrafo, porque não tinha como pagar seus préstimos. Aquele livro continha umas bobagens, provocando em Nilo Batista, lá do Rio, que nunca vi de perto mas que ainda vigio à distância, comentários acrimoniosos. Vinguei-me dele mais tarde, afirmando que críticos não sabem escrever.

Voltando ao livro “Tóxicos”: continha incorreções apropriadas à mocidade e falta de cultura. Vai daí, alguém precisava titular-se e não tinha paciência. Contratou um “ghost writter”. Este, com preguiça, copiou uns pedaços da minha obra, sem identificar a autoria. Muito tempo adiante, preclaro penalista também citou o opúsculo, com remissão à autoria, no que estava bem, mas meu texto continuava ruim. Já se vê que entendo de maconha e, teoricamente, conheço outros estupefacientes. Posso, portanto, falar ex catedra.

O prólogo serve à proibição da “Marcha da Maconha” e aos debates havidos ontem, 15 de junho de 2011, no Supremo Tribunal Federal, em razão de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental levada à Corte pela Procuradora-Geral da República em exercício, Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira. A Suprema Corte determinou a possibilidade de manifestações populares tendentes à defesa da liberação da cannabis sativa, ou do cânhamo indiano, se preferirem, ou do haxixe, primo-irmão da primeira, sabe-se lá. Dizem que maconha cura até dor de dente, podendo ser usada com êxito em algumas formas de tratamento médico. Mas os ministros do maior segmento jurisdicional da República não chegaram a debater isso. Aliás, não quiseram. O motivo central do debate se constituiu na chamada “liberdade de expressão”. Não se podia proibir o povo de conjugar esforços, publicamente, na defesa de determinadas pretensões, pois o preceito constitucional atinente à espécie era impositivo. Dentro de tal contexto, a chamada “Marcha da Maconha” não representava fazer apologia de crime.

A questão é muito complicada. Dizendo respeito a tal eufomânico, até se insere na rotina porque maconha, hoje, é brincadeira de criança. Nem mesmo a levam a sério. Acontece que o silogismo, levado às consequências maiores, é tétrico. Sem qualquer remissão a Sócrates, morto depois de tomar cicuta, parta-se para o raciocínio irônico: “Marchar pela liberação da maconha é lícito. José marchou pela liberação da maconha. Logo, José não comete crime”. Ainda sem referência aos antigos filósofos, segue outro arcabouço lógico: “Marchar pela liberação do ‘oxi” é lícito. José marchou pela liberação do ‘oxi’. Logo, José não comete crime”. Perceba-se o perigo das autorizações: o porte, o transporte, a cessão, a venda, a guarda, o manter em depósito e aquelas outras figuras adrede postas na lei em relação a substâncias entorpecentes constituem crime. O acidulamento da liberação de tais condutas tipifica, em tese, apologia. Entenda-se que o “crack”, até pouco tempo considerado o pináculo desses venenos, já foi posto de lado pelo tráfico, ou sofre muito séria concorrência de alguns outros demoníacos produtos químicos. Em tal aspecto, o Supremo Tribunal Federal se liberou um tanto da periculosidade do produto porque, afinal, cuidava-se do baseado, ou do fininho, fumado às escâncaras nos pátios de um ou outro estabelecimento de ensino, iniciando-se a necessária repressão. Entretanto, em abstrato, o raciocínio vale para estupefacientes de pequeno, médio e máximo potencial, transformando-se em doentio precedente.

O assunto tem variantes. Assisti a um filme, certa vez, representando uma cerimônia destinada às últimas despedidas de um moribundo: meteram-lhe dose generosa de morfina nas veias, tudo ao som de “Blue Moon”. Haja morfinômanos. Ao lado, as clínicas voltadas a abortamento hão de proliferar, pois marchar pela liberação da possibilidade de matar o feto significa conduta lícita.

Não se inveje a preocupação da Suprema Corte. A deliberação coletiva foi cinturada, é claro, na liberdade de expressão, evitando-se extensão terrivelmente angustiante. No fim de tudo, é ato de coragem. A título de últimas considerações, relembre-se que o país é, na atualidade, um enorme campo de experimentos contraditórios: de um lado, a Suprema Corte abraça a plena liberdade de expressão do povo; de outra parte, autoridades reprimem a sociedade de todas as formas possíveis e imagináveis, desde a proteção à intimidade ao escorchamento do pouco remanescendo nas algibeiras do trabalho diário, acrescentando-se ataques incríveis à resistência possível, nisto encangados setores do próprio Poder Judiciário. Um Brasil esquisito, é certo. Quem sabe seja tal fenômeno o preço da redemocratização que ainda não chegou a termo.

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