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União homossexual continua gerando polêmica

* Paulo Sérgio Leite Fernandes
**Gustavo Bayer
União homossexual continua gerando polêmica***

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Li um livro, aos dezessete anos, escrito por Aldous Huxley. Respeitadíssimo ao tempo e ainda agora, aquele inglês genial era, no fundo, diferenciado fabulador sempre equilibrado e estimulado pela mulher, autêntica sombra ao redor do escritor. Não o reli. Recordo confusamente que a obra terminava com um veleiro no oceano, ocupado por um casalzinho que escapara a bombardeio, feito pelo governo, de uma ilha habitada por criaturas que não morriam de morte natural. Haviam ingerido uma substância que as votava à eternidade. Aquilo seria terrível porque os humanos acabariam sepultando toda a espécie, por falta de alimento (era isso mesmo? Verifique-se).

Recentíssima disputa no Supremo Tribunal Federal sobre as uniões homossexuais, ditos “casamentos gays”, trazem uma sorte qualquer de analogia com a obra daquele saxão diferenciado. Na verdade, enquanto os segregados se punham vivendo na ilha, alguém descobrira que a água era misturada a anticoncepcionais, evitando-se assim a procriação. A pequena embarcação conduzia, na verdade, a esperança de manutenção da humanidade mas, concomitantemente, constituía outro risco, porque os herdeiros não morreriam de morte natural. E assim por diante.

A história parece não ter relação com a união homoafetiva. Tem sim, embora remota, na medida em que o juiz Jeronymo Pedro Villas Boas (seria parente dos irmãos famosos?) acentua não se poder, em cartório, reconhecer núcleo familiar em união de cidadãos do mesmo sexo. Por tal raciocínio, e outros, o magistrado anulou contrato de união estável entre dois homens. Em termos bem simples, dois indivíduos do mesmo sexo não fazem filhos. Ainda, ou por enquanto, isso não acontece. Aliás, o ministro Menezes Direito, já morto, em voto magistral, refere casal que concebeu três filhos pela técnica da cocultura, o que provavelmente teria transferido material genético animal para as crianças. Outro exemplo vem no voto: a fusão de blastômeros de dois embriões, um masculino e outro feminino, poderia produzir uma quimera humana (clique aqui para ler o acórdão). O eminentíssimo ministro Menezes Direito, repita-se, é morto. Homens bons deveriam ter vida eterna. É uma pena…

Volte-se ao magistrado que se recusou a admitir validez de contrato de união estável entre dois homens. O argumento principal impressiona. O conceito de família implica na possibilidade, em tese, de fertilização. Dois homens, atualmente, não o conseguem no intercurso sexual. O raciocínio é dramaticamente severo. Tem defeitos na premissa, porque no casamento comum um dos cônjuges pode ser estéril. Dentro do contexto, não produziria família.

O Supremo Tribunal Federal, no fim das contas, descortinou a questão fundamental, ou seja, aquela de enfrentar, sem falsa moralidade, a atração entre duas criaturas do mesmo sexo, homens ou mulheres, pouco importa (não esquecer das mulheres). A questão tem aspectos físicos e psicológicos. Em outros termos, é glandular, é psíquica ou é mista. Mas compreende, entremeando-se nisso, o conceito de minorias. Talvez, no meio dos longos votos proferidos pelos ministros da Suprema Corte, seja esta a discussão primacial.

Tocante à decisão do juiz goiano, há quem o ameace de afastá-lo da magistratura, buscando punição no Conselho Nacional de Justiça, na medida em que o Supremo Tribunal Federal, ao decidir a ADIn, deve tê-lo feito normativamente. Mas até nisso há particularidades constitutivas de uma zona “grigia” dependendo ainda de amadurecimento. A chamada “união estável entre pessoas do mesmo sexo”, no fundo, não passa de um contrato de natureza civil, criando direitos e deveres para os contratantes. Estes, no fim das contas, hão de juntar seus bens, ou não, adquirindo outros no meio do caminho. Se e quando desfazendo a sociedade, deveriam ter previsto o fato no ato da contratação: bens móveis e imóveis, se houver, obras de arte a serem retiradas das paredes (imaginem-se uma Tarsila do Amaral, ou mesmo um desenho autêntico de Modigliani), o cão de estimação, as panelas e o automóvel enfim, adquirido em comunhão, tudo há de ser repartido à maneira dos distratos comuns. Com maior ou menor dose de emoção, mas é assim que funciona. Não se pode examinar o tema com pudores hipócritas. Grandes personagens das artes, da música e da ciência em geral eram e são homossexuais. Não se espelhe o mundo moderno na infelicidade de Oscar Wilde ou de Lord Byron, ou ainda de Baudelaire. Fale-se neles sem qualquer precisão de datas mas é necessário trazê-los. E não se deixe de tentar perscrutar a intimidade de Dali, um enigma certamente, mesmo casado com Gala. Garcia Lorca, se não relembrado, ficaria triste, ele que foi morto por engano, justificando poema de Vinicius de Moraes (“A morte de madrugada”). Como é mesmo?

“Atiraram-lhe na cara

Os vendilhões de sua pátria

Nos seus olhos andaluzes

Em sua boca de palavras.

Muerto cayó Federico

Sobre a terra de Granada

La tierra del inocente

No la tierra del culpable.

Nos olhos que tinha abertos

Numa infinita mirada

Em meio a flores de sangue

A expressão se conservava

Como a segredar-me: A morte

É simples, de madrugada…”

Respeitem-se, é claro, as noitadas parisienses no Moulin Rouge, Toulouse-Lautrec, manquitolando, misturado no absinto. Não se descure a droga terrível que Sigmund Freud deixou de inventar porque usada antes por confrade seu na anestesia das cirurgias oculares. Chegue-se mais perto, recordando-se Michel Foucault, de quem todos os livros merecem pesquisa, com realce para “Manicômios, conventos e prisões”. Ponha-se todo o elenco no altar dos reverenciados, embora ressaltada uma relação toda especial com Pablo Picasso, catalão inimitável, cujo nome inteiro ocuparia, sozinho, três linhas do texto. Aquele espanhol troncudo e baixinho era mulherengo como a mãe da peste… Não deixa de ser bom.

Pare-se na velha Europa. Ainda não estamos plenamente prontos para o resto.

* Advogado criminalista em São Paulo há cinquenta e um anos.

** Áudio e vídeo

*** O texto é de única e absoluta responsabilidade do autor Paulo Sérgio Leite Fernandes. O intérprete Gustavo Bayer é apenas o ator.

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