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Por quem os sinos dobram? – Amy Winehouse

Paulo Sérgio Leite Fernandes

Marinalva gostava de sambar. Crioula sacudida, mantinha as ancas em bom estado. Tocava um pouquinho de violão, mas seu instrumento preferido era o cavaquinho. Tinha até um grupo: o Zé manejava o pandeiro e percussão em geral; Pedro se virava muito bem no “sete cordas”; Olívia, mais Querubina, faziam o coro; Marinalva cantava e sambava. “Charles Anjo 45”, o do “Ben Jor”, estava preso com outros líderes da malandragem. A moça ia levando, até que um dia viu a vida caminhando para lugar algum. Entrou em depressão. Pobre, preto e puta não costumam ter psiquiatra. No máximo, uma conversa de confessionário com o padre da igrejinha da praça. Aquele velho sabia de tudo, à maneira dos antigos criminalistas. Marinalva tinha alternativa no pai de santo. O primeiro não pedia nada, apenas uma moedinha para a padroeira da capela. O babalaô gostava de charuto, cachaça e cerveja, desovando tudo no barzinho a troco de um dinheiro qualquer.

Marinalva não resolveu seus problemas com Deus e o demônio. Era uma briga de vinte e quatro horas na cabeça da moça. Nem sexo tinha. Namorava Ezequiel, um que ainda usava navalha no bolso e andava de tamanco. Para quem não sabe, o calçado servia à proteção da mão direita, quando esgrimindo a lâmina, porque era canhoto, mas não havia quem entendesse da arte. Ezequiel fazia melhor na briga de rua que na cama. Faltava à mulata. Vai daí, a passista ficou triste, cada vez mais triste. Deixou de se banhar no chuveirinho. Tomava umas doses de “51”, em permuta de carinhos menos ortodoxos com o dono do boteco. Se fosse grã-fina, engoliria uma pastilha diária de “prozac”. Marinalva cansou de viver. Os desvalidos não se dão bem com “overdose”. Aliás, não há quem morra por excesso de maconha. É preciso mais alguma coisa. O cânhamo serviria, talvez, de porta de entrada para pular na frente do trem que passava lá embaixo, no subúrbio, em horas menos regulares. Não queria um fim desse tipo, porque não ficaria bem o estraçalhamento do corpo. Mantinha a vaidade, no fundo do quintal da consciência. Ouvira dizer de uma tal de madame “Bovari” (leia-se Bovary), que se matara tomando vitríolo, história contada pelo Sebastião, o poeta negroide, que tinha alguma coisa de letrado. A sambista se entusiasmou. Não entendia nada de vitriolagem, mas conhecia o “chumbinho”, popular veneno de rato vendido livremente no único armazém da favela. Se uma ratazana morria daquilo, gente morreria também. A crioula, certa madrugada, vestiu sua melhor roupa, deitou-se no colchão cheio de molas rangentes e meteu ficha no veneno. Misturou aquilo num meio copo de cachaça. Vizinhos chegaram depois de ouvir gritos abafados vindos da garganta toda machucada. Chegou o “resgate”. Levou a mulher para o Hospital da Glória, aquele que recebe, em maioria, o podre produto dos restos das madrugadas cariocas. Aconteceu o pior: Marinalva não morreu. Ainda aparecia às vezes num atalho da favela. Não cantava mais. Suas cordas vocais haviam sido destroçadas pelo inseticida cruel. Foi tudo pro chapéu. Laringe, esôfago e outros órgãos perderam as funções. Em noites de festa, a dançarina surgia nas rodas de samba. Batia no chão os pés descalços, sentada numa cadeira que algum frequentador piedoso lhe dava. Desistira de morrer.

Vi Amy Winehouse na televisão, numa dessas madrugadas. Feia e magrela. Seu corpo trazia um monte de tatuagens. Segundo consta, desprezava as grandes gravadoras e cantava de um jeito todo especial, sem muito movimento mas com uma certa dose de suavidade. Milhares de fãs a acompanhavam nos shows em campo aberto. Amy se foi. É saudada no mundo inteiro. Ingeriu remédio além da conta, ou teve morte natural? De qualquer forma, querendo ou não, olhou o abismo e este a encarou de volta. Provavelmente não doeu. Quanto a Marinalva, anda por aí ou foi enterrada em cova rasa no cemitério próximo à favela, às custas do Poder Público, com o testemunho do coveiro – e só do coveiro. Melhor seria aparecer um Silvio Caldas de ocasião, cavaquinho nas mãos, entoando em verso um pedaço do hino nacional dos melancólicos: “– Vila Isabel veste luto. Pelas esquinas escuto violões em funeral. Choram bordões, choram primas, soluçam todas as rimas, numa saudade imortal…”. A propósito, Silvio Caldas nem dedilhava o cavaco.

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