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Submissão de presos a tratamento difamatório (Ou “Quem pariu Matheus deve criá-lo”)

Paulo Sérgio Leite Fernandes

A grande imprensa nacional vem tratando com extremo cuidado o vazamento de informações correspondentes à exposição pública e indevida de presos submetidos, na Polícia Federal, a tratamento degradante. Os órgãos de divulgação brasileiros passam por período extremamente curioso mas não menos dramático: não há, salvo demonstração em contrário, tomada de posição doméstica sobre a escandalosa amostragem de encarcerados na chamada operação “Voucher”, codinome adotado pela Polícia para a identificação das atividades repressivas de hipotéticas ilicitudes ligadas ao Ministério do Turismo. Não se discuta o mérito das imputações. Respeite-se ao extremo o princípio ético impeditivo de crítica quanto ao mérito de causa entregue a outros advogados, cuidando-se, aqui, de premissa abandonada pela grande maioria dos comentaristas especializados. Fale-se da propagação das fotos dos indiciados, descamisados e mostrando num papel posto no peito o respectivo número de identificação. A pública amostragem dos presos, em qualquer período civilizado da humanidade, sempre teve significado de mutilação, concreta ou subliminar. Há alguma diferença, certamente, entre o caminhar ferrugento da carroça, em Paris, rumo ao cadafalso, conduzindo muitos condenados à guilhotina (as mulheres quase desnudas, expondo-se à visitação de olhares cúpidos) e as janelas abertas nos jornais a um espiolhamento assemelhado. Lá atrás, ao tempo dos senhores feudais, penduravam-se os infelizes em gaiolas balouçantes nas cordas pendendo dos torreões. Morriam devagar, enfraquecendo-se no dia-a-dia em razão da fome e da desidratação. O ser humano, segundo dizem, passou por uma sofisticação acentuada: as criaturas submetidas a perseguição são simbolicamente mostradas ao povo, como se fora uma conduta pudica materializada pelos jornalistas, havendo lavação geral das mãos. Há, no máximo, o chamamento de uma censura posta pela Presidente da República. Esta afirma que houve exagero. A imprensa, entretanto, teve três alternativas: censurar igualmente o despudor da mostra, calar-se ou aplaudir. Preferiu-se a opção do meio, o que é muito feio. O nome dos encarcerados não importa, sendo irrelevante, também, examinar a situação de cada qual. Corruptos ou não, conservam o estado de inocência, merecendo respeito de todos, inclusive daqueles que os prenderam.

Relembre-se que um dos prisioneiros foi exibido com um tipo especial de algemas, constituindo-se num sistema que prende os pulsos à cintura, provavelmente em razão de um cinto grosso de couro, impedindo-se assim que o torturado – e tortura é – proteja o rosto dos fotógrafos indiscretos. Use-se, aqui, uma imagem repetitiva a não sair da cabeça do escriba: as índias da região amazônica, quando olhadas por mateiros intrometidos, cobriam as faces com as mãos, não a região pubiana, veja-se bem, mas os rostos, sim, aquela parte do corpo que lhes dava a característica “personalidade” advinda da antiga Grécia (v. persona). Não se sabe quem, quando e como providenciou o vazamento da repugnante atividade. Alguém o fez, com certeza. Mas há, ao lado, uma circunstância mais abjeta: é aquela de os fotografados, voluntariamente, colocarem no torso o número, em grandes caracteres, de seus registros gerais, conformados sim, desnudados também, na intimidade do ergástulo talvez, mas sempre conformados com o envergonhamento. Aqui, mesmo sendo bandido por suposição, o ser humano precisa manter uma dignidade fundamental, recusando-se a tanto, embora até espancado pelo esbirro oficial. É aqui que as coisas se complicam, porque a comunidade perdeu a consciência da dignidade que todo burguês precisa manter. Quando o cidadão se entusiasma à vista do aviltamento praticado pelo carcereiro, toma lugar, retroativamente, ao lado das megeras desdentadas que ululavam em torno do cadafalso erguido na praça da Bastilha.

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