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Quando os juízes brigam (A pretexto do Conselho Nacional de Justiça)

Paulo Sérgio Leite Fernandes

O fenômeno da briga interna no Poder Judiciário, envolvendo as mais altas cortes do país, reflete apenas o que vem acontecendo em outros setores da chamada sociedade, ou seja, das relações grupais na comunidade humana. No fim, faz parte do todo, porque animais inferiores e superiores entram muita vez em conflito mais ou menos organizado, cada conjunto defendendo ora o alimento, ora o território e até mesmo a necessidade de manter a possibilidade de acasalamento, havendo até uma espécie de rapto das sabinas entre os babuínos. É assim. Evidentemente, os seres humanos constituem o suprassumo, conhecendo, portanto, em tese e de vez em quando, a razão primordial de seus conflitos, embora muitas e muitas guerras se iniciem por fatores primários perdidos nas lonjuras.

O introito parece desacertado com o título, mas há explicação à análise do momento sociopolítico vigente no Brasil. Iniciou-se, há não muitos anos, um movimento que se pode denominar “denuncista”. A própria lei penal, abrigando a chamada “delação premiada” ou “colaboracionismo”, herdado dos americanos sim mas, paradoxalmente, gerado no nacional-socialismo nazista, sofrera, lá atrás, o contágio venenoso do dedo-durismo. Obviamente, há um movimento prenhe de boas intenções, pois a luta contra a corrupção, a bandidagem, a face negra do poder enfim, representa o ponto alto, no país, das relações entre os censores, de um lado, e os censurados, de outro, estes últimos suspeitos ou convencidos de má conduta. Enquanto Hitler se aparelhava para dominar o mundo, recriando o arianismo, que não era privilégio seu, a juventude hitlerista era conscientizada de que a pátria estava acima de tudo. Crime era ofensa ao são sentimento do povo alemão. Não havia, a certa altura, recato algum. Pai, mãe, irmãos, vizinhos, não existia quem tivesse imunidade contra a atribuição de cometimento de faltas. O Brasil se introduziu agora nesse esquema morfético: criminosos multiplamente processados recebem a benevolência e o perdão de não se sabe quais autoridades, bastando o apontamento de comparsas. Criaturas repletas de bons sentimentos aparecem dando provas de moralidade excelsa, pretendendo compor as comunidades e descompor nódoas a mancharem a imaculabilidade dos grupos. Segmentos da repressão, nestes compreendidos a Polícia e o Ministério Público, ambos direcionados a um discutível bem maior, colocam ouvidos eletrônicos nas portas, janelas e paredes dos domicílios, ampliando a escuta e a visão numa espionagem que ultrapassa os limites dos buracos das fechaduras vedantes dos segredos conjugais. Dentro de tal contexto feérico, embora haja na Constituição a garantia da manutenção do estado de inocência, o investigado é condenado antes mesmo da instalação do processo. Desnudado pela imprensa perante a comuna, perde a capacidade de sobrevivência, tem o solo salgado, os bens bloqueados e a família literalmente cuspida no meio da rua, numa sofisticada exposição à moda das carroças ferrugentas que rangiam pelas ruas de Paris rumo a madame guilhotina. Há, entenda-se bem, no entremeio, um paroxismo consistente numa espécie de delação compulsiva que não poupa os diversos pedaços da chamada Administração Pública. Parece que os delatores querem redimir-se das próprias culpas, ou partir para a autoflagelação, à maneira daqueles missionários que se desvestiam e, descalços, palmilhavam os pedregulhos da cidade antiga, entendidos por uns, agredidos por outros, apupados ou aplaudidos enfim, mas sempre sacrificados no frigir dos tumultos gerados pelas confissões levadas aos recantos pelos ventos da discórdia.

É preciso ter cuidado com essas coisas. A delação, no perigosíssimo conflito ético atravessado pelo Brasil moderno, pode assumir aspectos satânicos. Vale aqui o silogismo socrático: “– Todo juiz é bandido. Sócrates é juiz. Logo, Sócrates é bandido”. Ou então: “– Todo advogado não presta. Sófocles é advogado. Logo, Sófocles não presta”. Vem sucedendo, entretanto, uma série de imputações gerando sofisma inaceitável: “– Alguns juízes são bandidos. Demóstenes é juiz. Logo, Demóstenes é bandido”. Tais cogitações, devidamente trabalhadas por uma imprensa nem sempre adaptada à prudência, generaliza denúncias e provoca, é claro, a reação dos chamados homens bons. Em outros termos, enquanto surgem as acusações multiformes, aparece a reação absolutamente procedente: que venham os nomes dos infiéis!

Tudo diz com a celeuma provocada pela ilustríssima corregedora do Conselho Nacional de Justiça enquanto chicoteia (a expressão é esta) a facção que pretende retirar daquele órgão a plenipotencialidade da assunção de atividades censórias do Poder Judiciário em geral. Existe ali, é claro, nas entranhas, combate hercúleo entre os extremados e aqueles outros que querem, inclusive, preservar a autoridade dos tribunais regionais. Evidentemente, o combate intestino merece a atenção das entidades intervenientes na administração da justiça, porque não pode a Ordem dos Advogados, por exemplo, fazer de conta que não viu ou que não sabe, ela própria que contribuiu, há pouco, por meio de seu bastonário máximo, para a prisão de acusados apenas submetidos ao início de procedimentos apuradores da inocência ou da culpabilidade. De qualquer forma, imputações genéricas não ficam bem, principalmente se atribuídas ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que tem seus pecados sim, mas nunca elencados em benignidade com magistrados infratores. O Tribunal de Justiça deste Estado precisa, é certo, modernizar-se, pondo em dia milhares de ações cíveis e criminais enterradas nas alfombras dos distribuidores. Deve respeitar recomendações no sentido de preservar o respeito à beca, desmontando os ridículos detectores que, no Fórum Criminal Central, provocam o espiolhamento das bolsas e das pastas dos doutores. São perebas, sim. Procurando bem, todo mundo as tem. Em cinquenta e dois anos de advocacia criminal extensa já vi magistrado autoritário desbordando no relacionamento com as vestes talares. Já tive embate físico até, na mocidade, com juiz desrespeitador da advocacia. Já ajudei a meter o pé na porta de pretores que se recusavam a contato com os postulantes, meus pecados da mocidade, mas nunca vi juiz ladrão, embora um desesperado qualquer tivesse, num ato de desatino, praticado homicídio contra terceira pessoa. Homens e mulheres enlouquecem. A sanidade psíquica impoluta não é prerrogativa da toga. Há quem se desequilibre, mas bandidagem, aqui, não. Se e quando houve algum corrupto, deram-lhe o destino adequado, em silêncio, como se faz na família com quem pratica desatino. Assim fazemos nós advogados, não expondo o irmão infeliz à visitação pública.

Diga-se, finalizando: se há juízes despudorados e ansiosos do embolsamento dos dinheiros advindos da corrupção, digam-no os censores, apontando-os para a punição benvinda. A direção indeterminada das farpas funciona à maneira de água não benta espargida sobre todos os fiéis, forjando escaras que bons circunstantes não querem na pele e abjuram agressivamente. E têm muita razão.

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