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O dia dos mortos

* Paulo Sérgio Leite Fernandes
**Gustavo Bayer
O dia dos mortos***

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O dia 2 de novembro é consagrado pela Igreja Católica, universalmente, aos finados, ou seja, aos defuntos. Há, quanto a estes, uma trágica curiosidade: desde os primórdios, quer entre os católicos, muçulmanos ou israelitas, os restos mortais são tratados com dignidade, valendo relembrar que os vikings, entre outros povos, incineravam os corpos, ora em piras funerárias, ora em embarcações às quais ateavam fogo, fazendo-as perderem-se nas brumas. Não é irrelevante, no contexto, a eficácia com que os egipcíacos embalsamavam seus mortos, havendo o costume de se prover as tumbas com alimentação adequada, mulheres, servas e animais domésticos pertencentes aos idos de categoria especial. Existe por aí hoje, mesmo entre os cristãos, a opção pela incineração, costumando os agentes funerários observar, na discoteca da casa, as recomendações de música dos sobreviventes, dos familiares. Alguns escolhem Mozart, outros preferem Chopin e terceiros, mais populares, preferem, no Brasil, Vinicius de Moraes, principalmente naquela canção que tem, ao fim, estrofes magníficas: “Quem pagará o enterro e as flores, se eu me morrer de amores? Quem, dentre amigos, tão amigo para estar no caixão comigo? Quem, em meio ao funeral, dirá de mim: — Nunca fez mal… Quem, bêbado, chorará em voz alta de não me ter trazido nada? Quem virá despetalar pétalas no meu túmulo de poeta? Quem jogará timidamente na terra um grão de semente? Quem elevará o olhar covarde até a estrela da tarde? Quem me dirá palavras mágicas capazes de empalidecer o mármore? Quem, oculta em véus escuros, se crucificará nos muros? Quem, macerada de desgosto, sorrirá: — Rei morto, rei posto… Quantas, debruçadas sobre o báratro, sentirão as dores do parto? Qual a que, branca de receio, tocará o botão do seio? Quem, louca, se jogará de bruços, a soluçar tantos soluços que há de despertar receios? (…)”. Por fim: “(…) Quem se abraçará comigo que terá de ser arrancada? Quem vai pagar o enterro e as flores, se eu me morrer de amores?”.

Assisti a um filme, comédia dramática, em que um homem fica a pé no deserto de Nevada e pede carona a alguém. O motorista carrega no sovaco uma lata de café em pó. Num determinado ponto, precisaram parar. Quase sempre é preciso descansar um pouco no meio da viagem. Há um posto de gasolina, no meio da estrada. O chofer some e esquece o café. Desajeitado, o carona resolve fazer um cafezinho, usando o pó moído. O gosto é horrível. O degustador cospe tudo. Mais tarde, reencontram-se os dois, outra vez no meio da estrada. Brigam no meio da poeira, porque o desaparecido reclama, chorando copiosamente, a exibição do recipiente, a lata de café em pó, que continha as cinzas de seu pai. Pretendia jogá-las ao vento num despenhadeiro qualquer…!

Saudade é assim mesmo. Certa vez escrevi um conto referente à morte de um sargento da PM que era regente da banda e mestre-sala de escola de samba. Com certeza, tivera uma transa com a porta-estandarte. Vai daí, no velório, a moça apareceu na frente da viúva. Todo mundo fingia que não sabia mas todo mundo sabia. Todo mundo sabe sempre. O enterro virou caso de polícia. Serenados os ânimos, foram arrumar o caixão. O defunto tinha fugido… Era esperto, o bigodudo.

No dia dos mortos, a gente conta história divertida, pra não chorar.

* Advogado criminalista em São Paulo há cinquenta e um anos.

** Áudio e vídeo

*** O texto é de única e absoluta responsabilidade do autor Paulo Sérgio Leite Fernandes. O intérprete Gustavo Bayer é apenas o ator.

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