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Ricardo Renzo Brentani morreu

Paulo Sérgio Leite Fernandes

Ricardo Renzo Brentani, aquele mesmo que reergueu o Hospital A. C. Camargo (antes Hospital do Câncer), atreveu-se a morrer ontem à noite, 29 de novembro de 2011. Seu coração resolveu dar um basta. Em termos científicos, Brentani morreu de infarto. Durante muitos anos convivemos, no Conselho de Curadores ou nos almoços mensais em que ele, invariavelmente, era o anfitrião. Conversamos bastante sobre aquela Instituição – o Hospital – recebida por ele, vinte anos atrás, ou mais, em situação difícil, transformando-se agora num centro de excelência respeitado no mundo inteiro. De vez em quando trocávamos algumas prudentes considerações sobre a vida e a morte, ambos muito cuidadosos com o tema, porque ele e eu gostávamos muito da vida e tínhamos inumeráveis projetos a cumprir. Certo dia eu lhe disse que, à moda dos chamados animais nobres, homens antigos não deveriam adoecer vagarosamente. Conviria acontecer com eles o que se faz aos cavalos de raça, ou seja, a morte rápida e indolor, se possível, dando-se menos trabalho aos amigos e familiares. Em suma, uma solução pragmática. Na verdade, havia o receio da chegança de uma perda paulatina da capacidade de criar. Iria embora, no contexto, aquilo que justifica a manutenção do ser humano na comunidade. Em síntese, perder-se-ia a utilidade.

Ricardo Renzo Brentani dizia que não era médico, e sim um cientista. Perguntei-lhe, num dos colóquios, se ainda seria capaz de empunhar um bisturi e fazer uma apendicectomia. Ele riu e disse que o faria, em estado de necessidade, não respondendo pelas consequências. Brentani, realmente, era devotadíssimo à pesquisa do câncer e das formas de enfrentamento da terrível moléstia. A notícia de sua morte provocou muitos artigos, no Brasil e no exterior, especificando seu vastíssimo currículo e suas realizações na especialidade. Não vale a pena, portanto, repetir aquilo tudo. Basta relembrá-lo a partir do primeiro dia em que o conheci, anos e anos atrás, um homem grande, não gordo, mas grande, sim, uma cabeleira profusa que ele cortava de vez em quando, um comportamento franco, leal e quase rude. Não gostei dele naquele primeiro dia. Ou melhor, até gostei, mas saí com a impressão de que um de nós dois daria muito trabalho ao outro numa eventual altercação. É bom dizer que nesses quase trinta anos de convívio constante nunca brigamos. Ele tinha o bom hábito de dizer as coisas na lata. Em benefício do Hospital seria, aliás, capaz de sacrificar alguém que, mesmo muito competente, estivesse a tergiversar com os deveres relativos à Instituição.

Ricardo Renzo Brentani viajou muito. Conhecia praticamente o mundo inteiro, sempre ligado a troca de informações sobre a especialidade. Ria pouco, mas quando ria, ria com vontade. Falava um nome feio às vezes, como bom italiano naturalizado. Morava numa casa grande, lá no velho Brooklin. Casado com Mitzi, bióloga ilustríssima e igualmente professora da Universidade de São Paulo. Tinha Hugo, Helena, Alexandra e Barbara. Visitei-os. É uma família alegre. Havia, no meio deles, um cão enorme mas muito boa praça chamado “Arno”. Era um dogue alemão, grande como o dono.

Vai ser difícil à Fundação Antônio Prudente continuar na vitoriosa trajetória inaugurada por Ricardo Renzo Brentani. Houve um tempo, não muito distante, em que ele quis oferecer seu posto a guerreiros mais jovens. Não o permitiram. Muitos projetos ficaram pela metade. Aquilo (a Fundação) é um colegiado integrado por homens sábios. Hão de se refazer da perda e continuar a tarefa.

Existem no Hospital do Câncer uns poucos sobreviventes dos primeiros tempos, aquela época de Antônio e Carmen Prudente. Há lá, ainda, uma alma boa chamada doutor Humberto Torloni. Eu o chamava “O Egípcio”, rememorando livro de mesmo nome escrito por Mika Waltari. Vimo-nos no velório, hoje de manhã. Abraçamo-nos e apenas nos olhamos, sem dizer palavra. Torloni usa dependências quase escondidas, organizando os arquivos que, segundo consta, são os maiores do mundo, sabendo-se que a luta contra o câncer tem, em certo aspecto, conotação ligada a estatística. Trata-se, portanto, de trabalho muito sofisticado. Aquele homem estava lá quando os outros chegaram e continua lá depois que Brentani partiu. Ele sabe tudo. La nave va.

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