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Devaneando ao longo das fabulações

Ricardo Antunes Andreucci
Devaneando ao longo das fabulações
(Ricardo Antunes Andreucci ressurgiu)

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O dilema proposto por Pirandello, “a vida, ou se vive ou se escreve”, revela-se, em relação a Paulo Sergio Leite Fernandes, mais aparente do que verídico. Com seu livro “Fabulações de um velho criminalista”, lançado recentemente, mostra como elidiu a sofismática dificuldade: simplesmente existindo e redigindo.

A obra agrega fragmentos, mas não tão fragmentos, de sua atividade profissional como advogado, de sua biografia e de sua autêntica visão de mundo.

Outorga razão a Montaigne: “somos todos constituídos de peças e pedaços juntados de maneira casual e diversa, e cada peça funciona independentemente das demais. Daí ser tão grande a diferença entre nós e nós mesmos quanto entre nós e outrem: ‘crede-me, não é coisa fácil conduzir-se como um só homem’” (Ensaios, livro II, capítulo 1).

Desvenda o Autor sua personalidade nos mais variados aspectos, daí que o texto surja, simultaneamente, instigante, ousado, agressivo, contestador, criativo, irreverente e, às vezes, suave e, com frequência, contundente. Pedaços que constroem o todo, profundamente humano, revelação que transparece com um certo e surpreendente acanhamento.

Talvez, por tal motivo, o escrito mostra-se para além da verdade limitada pela  tradicional e rígida formula: “adaequatio intellectus ad rem” como, aliás,  ele próprio  adverte. Substitui a realidade pela fantasia ou mescla ambas, fazendo da vida uma alegoria na qual os limites e contornos debuxados pela imaginação se esfumaçam, perdendo a nitidez.

Há momentos em que o sentido do onírico e do fantástico açambarca a cena pondo em crise a ideia  da verdade – o que é, quando começa e onde acaba – apenas podendo ser vislumbrado seu contorno nas sombras da ilusão.

O existente, porém, com renitência, cobra seu império, porque a incursão pelo inconsciente ocorre ainda dentro dos seus domínios, ao menos parcialmente.

E à narrativa unem-se  os desenhos do Autor, ilustrações. Lembro aqui, porque pertinente, um artigo precioso de Rafael de Paula Aguiar Araujo a respeito de Nietzsche e Banksy, este um artista de rua, estudo que bem poderia ter sido composto mirando as “Fabulações de um velho criminalista”.

Nietzsche “ao se recusar a tutorar o leitor, aguarda que de sua reação venha  uma resposta criativa, inédita. De fato, o que temos aqui é um ódio ao senso comum, a leitura rasa do mundo”.

Aproxima, ele,  a arte e pensamento, desejando a desordem deste e o desacordo de ideias propondo liberdade e proximidade com o mundo (cf. Aguiar de Araujo).

As gravuras  de Banksy, como as de Paulo Sergio, “são verdadeiras provocações aos valores tradicionais e, muitas vezes, ao próprio cotidiano dos homens.

Ao observar as obras de Banksy encontramos uma tensão entre o real e o representado. Há uma ironia implícita em boa parte delas que evidencia a banalidade do cotidiano, além de uma criatividade sempre presente capaz de evidenciar as contradições” (Coleção guias da filosofia Nietzche, vol.II, Ed. Escala).

Assim o texto e gravuras, associados, constroem uma unidade de apólogo e de epigrama, encadeando, numa ordem própria, fatos, sentimentos e pensamentos regidos pela ideia filosófica de que o homem é a medida de todas as coisas, numa superação do cartesianismo.

Para encerrar, regresso ao inicio, a Pirandello: “o que antes lhes parecia ser a realidade, agora percebem que é uma ilusão. Mas será que há outra realidade fora desta ilusão?” (Os aposentados de memória, em 40 Novelas, Companhia das Letras).

Parabéns, Paulo Sérgio,  pelo enigma, também.

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