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Os moços da USP e um novo “Woodstock”?

* Paulo Sérgio Leite Fernandes
**Gustavo Bayer
Os moços da USP e um novo “Woodstock”?***

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Tenho lido nos grandes matutinos paulistas alguns artigos constituindo rescaldos da chamada “Invasão da USP”, dizendo respeito, evidentemente, à ocupação de prédio da reitoria por alguns universitários. Isto me lembrou dois momentos da história do Brasil, sendo o segundo, mais particularmente, a rememorização do episódio da rua Maria Antonia, em São Paulo. Na verdade, lá atrás, alunos da Filosofia da USP entraram em conflito com outros tantos da Universidade Mackenzie. Morreu um jovem. O drama, aliás, foi revisto numa peça chamada “Se Essa Rua Fosse Minha”, em breve temporada no Centro Cultural de São Paulo.

Tocante à ditadura implantada no país a partir de 1° de abril de 1964, existem os historiadores e os sobreviventes. Um jornal paulista expôs a foto da presidente da República numa auditoria de guerra, ela mocinha e bonita, os membros do tribunal escondendo o rosto para não serem reconhecidos, não se sabendo quem teria preservado o instante para recomposição futura. A presidente, é claro, tem na memória um pedaço do que aconteceu, mas só um pedaço. Os esbirros da ditadura detêm outra porção, admitindo-se a morte de uns e outros, pois muitos já eram antigos naquele tempo. Há também os denominados partícipes secundários, nestes compreendidos juízes e promotores de justiça encangados no sistema dominante, realçando-se que mesmo as ditaduras precisam da justiça e de acusadores para poderem exercitar o domínio. Restam os historiadores, isto é, aqueles que recolheram documentos da época, que entrevistaram ou que ouviram dizer, perenizando o contexto em escritos mais ou menos fidedignos (mais menos do que mais).

O ser humano vive de memórias. Somos só passado. Presente e futuro são projetos. Temos, portanto, a consciência assentada naquilo que já foi, servindo-nos os retratos à interpretação dos acontecimentos posteriores que, por uma fatalidade, também constituem o que já passou.

Dentro de tal contexto, é difícil uma comparação entre as razões motivadoras da recente invasão da USP e aqueles outros motivos que teriam levado, nos idos de 1973, a conduta assemelhada da soldadesca, uma cognominada “reação política”, a outra apelidada de “baderna”. Cuida-se, aqui, de solução simplista que não leva em conta motivos sequer racionalizados pelos próprios jovens participantes do movimento rebelde acontecido no campus da Universidade de São Paulo. Há na criminologia estudiosos de movimentos coletivos. A multidão, certamente, tem uma inteligência própria que destoa frequentemente do sentir de cada qual. Os moços e moças entrincheirados na reitoria da Universidade de São Paulo não conscientizam, repita-se, os motivos subliminares da reação moderna. Vale a pena, sem profundidade embora, trazer à superfície o Brasil atual, verificando-se aqui, ali e acolá, um movimento do “Poder” restritivo daquelas chamadas liberdades individuais clássicas ou ortodoxas. Em suma, uma atividade censória determinada a fazer do povo associação de criaturas cinturadas na obediência servil, ou seja, não contestadora. Disciplina, é a palavra de ordem. O jovem tem aprendido, nas universidades, a ser obediente, disciplinado e receptor atento a preleções ressaltando o império da lei. O moço, em razão de padrões até biológicos, absorve energias que não podem ser administradas com normas de conduta imperativas. Tal vocação é de certa forma explosiva, sublimando-se seguidamente nas academias de musculação e quejandos. Há estradas vicinais menos saudáveis, mas tudo faz parte de um enlaçamento geral consistente no fato de a mocidade brasileira estar, no entretempo, extremamente angustiada com uma dose esquisita de sonegação da liberdade, cujos influxos nem sempre são de caráter físico, mas exibem injunções de natureza psicológica. Daí acontecer ocasionalmente uma ebulição análoga àquela concretizada no campus da USP. De um lado a imposição disfarçada da subserviência, representado-a o mesmo conjunto de criaturas fardadas atuantes, nos idos, no Largo de São Francisco e na PUC de São Paulo, convindo-se que a Polícia Militar rarissimamente está do lado do povo. Interfere sempre para conter, ressalvada uma ou outra oportunidade em que exerce alguma atividade meritória. Do outro lado, concretiza-se a impregnação na consciência da juventude daqueles percalços antigos, captados melhor ou pior, pouco importa, mas sempre interagindo na repugnância à presença do homem fardado. Assim, não se resolve a emergência com o chamamento do universitário e da universitária a demonstração de “bom-mocismo”. Há entre as autoridades, em arredondamento geral, manifestações de poder inflamadas por uma espécie de “tolerância zero”, tudo em confronto com menos organizada tendência nos estudantes a uma dose maior de liberdade. Não se pense, então, que o incidente na Universidade de São Paulo é episódico. Não é não. Veem-se nos conglomerados uns compostos energéticos a demonstrarem que a juventude brasileira precisa de algo não corporificado nesse instante sócio-político-ideológico. Se perguntarem ao cronista qual é o alimento faltante, ele também não sabe. Não se diga, entretanto, que o moço renitente é um baderneiro. Nem sei se gosto da presidente, como se apresenta hoje. Aprecio mesmo aquela mocinha posta no meio da auditoria de guerra, num lugar qualquer do Brasil. A jovenzinha daquele tempo tinha os segredos que de repente ainda mantém hoje, porque não conta. Mas é a primeira mandatária da nação, embora tatuada, sob o terror, com o estigma da subversão. É bom pensarmos nisso.

* Advogado criminalista em São Paulo há cinquenta e dois anos.

** Áudio e vídeo

*** O texto é de única e absoluta responsabilidade do autor Paulo Sérgio Leite Fernandes. O intérprete Gustavo Bayer é apenas o ator.

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