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Paulo Vanzolini, Chico Buarque, Derosse e o Direito Penal

* Paulo Sérgio Leite Fernandes
**Gustavo Bayer
Paulo Vanzolini, Chico Buarque, Derosse e o Direito Penal***

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O tempo vai correndo. Alguns penalistas e processualistas penais se endurecem ao exame da doutrina, transformando-se em álgidos comentaristas da lei. Esmeram-se na discussão das diversas opções correspondentes ao tipo legal penal. Falam da teoria finalista da ação, do crime, da antijuridicidade e quejandos como se fossem lâminas assépticas postas sob o microscópio do cientista. É assim e assim não é, pois tudo diz com o ser humano. Por trás da gelada análise do cometimento de infrações criminais pelo magistrado há sempre as básicas emoções tratadas por Mira Y Lopez (o Amor, a Ira, o Medo e o Dever). O resto é conversa. Rotineiramente, chega a hora em que o jurista se torna cada vez mais hermético, à maneira dos antigos esculápios que, além de terem letra ruim, escreviam em latim para que o leigo lhes não traduzisse as receitas. Vê-se muito disso nos consultórios médicos. Alguém disse que existe lei, agora, obrigando os facultativos à escrita legível. Se é verdade, não se há de perder tempo para achar o texto ou o dispositivo correspondente.

O direito penal é muito mais que isso. Está na boca do povo, na janela fechada da maloca na favela, nas sombras dos logradouros públicos, no silêncio dos quartos de dormir, embaixo das pontes e, enfim, ataca a imaculabilidade dos próprios sacrários, perturbando a tranquilidade dos papas e cardeais. A doutrina, a bem dizer, vem da batucada de Jorge Benjor (v. “Charles Anjo 45”). O crime sangrento teria surgido, se verdadeira fosse a lenda, ao som da primeira pancada desferida por Caim no crânio de Abel. Aconteceria, com certeza, na disputa dos primitivos pelos ossos do animal abatido, pertencendo a comida, em tese, a toda a comunidade tribal. Não seria demais procurar o comportamento ilegal nas quebradas da arca de Noé, obrigando o patriarca – se e quando existindo o próprio – à repressão violenta, sem direito a recurso qualquer. Lá estava, nos dez mandamentos, a proibição ao homicídio, entre outras. “Não matar”. “Não cobiçar a mulher do próximo” (obrigação caída em desgraça). “Não cobiçar as coisas alheias”. “Amar a Deus sobre todas as coisas” (pecado mortal, com certeza, a violação do preceito). O direito punitivo é posto, sim, no goto do populacho antes de se colocar na frase seca e carunchosa do jurista. E por estarem no inconsciente coletivo, os preceitos de direito criminal surgem, é claro, nas rodas de samba, na mesa dos bares e até mesmo no gole de cachaça do qual o presidente da República, honradamente, parece não se ter desfeito. É assim. Isso lembra um dos maiores criminalistas que o cronista já conheceu, Derosse José de Oliveira, das praias santistas (como Martins Fontes e Vicente de Carvalho), único de quem Waldir Troncoso Peres confessou ter medo, amigo de Dorival Caymmi, Inezita Barroso, Silvio Caldas, Nelson Gonçalves e tantos outros, autor de belíssimo romance policial não publicado (“Um cão na madrugada” – os originais estão guardados), poeta completo e não perenizado a não ser numa escolinha de primeiro grau posta à beira de uma avenida. Derosse merece o busto de bronze, assemelhadamente a Adoniran Barbosa, cuja efígie, venerada por todos, foi posta na pracinha Dom Orione, no Bixiga.

O assunto é apaixonante. Justificaria tratamento mais extenso, mas basta, por enquanto, dizer que nem Derosse, nem Chico Buarque, nem mesmo Paulo Vanzolini deixaram de referir, nas rimas, os crimes fundamentais da espécie humana: aquele que tira o sangue do homem ou da mulher, por amor desencontrado ou ódio desenfreado, mais o outro, que furta os dinheiros das algibeiras do semelhante. O cronista conhece bem as diversas técnicas. Já foi beneficiado, anos atrás, com dedicatória no livro escrito por experiente investigador de polícia já morto: chamava-se “Do estelionato e outras fraudes”. Lá havia a descrição do “Conto do Bilhete Premiado”, “Conto da Santa Casa”, do sequestro fajuto, hoje muito em voga, etc.

Vanzolini, quanto ao homicida apaixonado, escreveu o hino nacional (ou seria internacional?) da dor de cotovelo. Começa assim: “– De noite, eu rondo a cidade a te procurar, sem te encontrar”. Lá no fim: “– E nesse dia, então, vai dar na primeira edição, cena de sangue num bar da avenida São João”. Ainda vertendo do genial poeta: “– Na praça Clóvis/ Minha carteira foi batida/ Tinha vinte e cinco cruzeiros/ E o teu retrato/ Vinte e cinco/ Eu, francamente, achei barato/ Pra me livrarem/ Do meu atraso de vida/ Eu já devia ter rasgado/ E não podia/ Esse retrato cujo olhar/ Me maltratava e perseguia/ Um dia veio o lanceiro****/ Naquele aperto na praça/ Vinte e cinco/ Francamente foi de graça”.

****Batedor de carteira. Já fui desapertado, na Líbero Badaró, de três mil dólares, mas com delicadeza tal que daria os parabéns ao ladrão, se o reencontrasse. Isso não existe mais. Agora é na ponta do revólver.

* Advogado criminalista em São Paulo há cinquenta e um anos.

** Áudio e vídeo

*** O texto é de única e absoluta responsabilidade do autor Paulo Sérgio Leite Fernandes. O intérprete Gustavo Bayer é apenas o ator.

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