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Problemas e soluções possíveis na Cracolândia

Problemas e soluções possíveis na Cracolândia*

 

                                                                      Paulo Sérgio Leite Fernandes

                                                                     Maurício Vasques de Campos Araujo           

                                                                       Rogério Seguins Martins Júnior

 

Assistimos a um filme, certa vez, chamado “Eu sou uma lenda”. Era a história de um sobrevivente em Nova Iorque de peste que havia enlouquecido a população. Os habitantes se transformavam em seres monstruosos, deformando-se física e psiquicamente. Aquele herói não contaminado procurava encontrar um soro, ou vacina, aplicando-o aos contagiados. A história é horrível, mas não mais repelente que a realidade mostrada pela cracolândia paulistana, vendo-se dezenas de zumbis perambulando no centro velho de São Paulo. Observou-se, nesta capital, uma rotina posta à luz do dia em razão de desastrada atividade da Polícia Militar, motivada ou não em setores outros da repressão. Com a conduta desmetodizada dos agentes policiais, consumou-se ataque pretensamente desorientador do conjunto de dependentes, mas sem resultado qualquer, porque os viciados não funcionam à maneira de populacho a ser desconjuntado. A coletividade tem, é certo, consciência própria, mas os indivíduos recompõem, quando separados, a personalidade desintegrada e reativam o raciocínio antes desapegado. O dependente é outra coisa. Vaza escorreitamente entre os dedos do apreensor e se reúne mais adiante, na esquina, no escurão, no porão pútrido ou na calçada nauseante. Ali, há três soluções: consegue-se a cura de um ou outro milagrosamente atento à necessidade de viver; internam-se compulsoriamente os demais (involuntariamente é expressão elegante que não fica bem); tritura-se aquela massa saltitante fazendo-se, em alternativa, aquilo que Erasmo Dias, à época, quis fazer com os mendicantes de São Paulo, superlotando alguns ônibus com eles e os largando em cidades circunvizinhas, com consequências, obviamente, dramáticas. O contingente retornou às origens. Relembrem-se, agora, a Revolução Francesa e Charcot, ainda hoje citado, e muito, por ter sido o fundador e mantenedor do Salpêtrière, hospital parisiense destinado ao isolamento e trato de mulheres ditas ensandecidas. Aquele nosocômio chegou a ter oito mil internas, devendo o nome a ter sido implantado em local destinado antes a uma fábrica de pólvora. A instituição existe, com outra destinação, mas está lá. Aqui no Brasil, parece, havia um programa a ser concretizado para o combate e tratamento da dependência química, com realce para o crack. A Polícia Militar de São Paulo apertou um gatilho sem saber qual o resultado dos disparos. Aparece numa das fotos uma viciada com a boca destruída por bala de borracha. Isto, em linguagem israelita, é o pixulé do problema. Os “zumbis” ainda estão lá e hão de ficar ali, ou espalhados, porque o problema não está na junção dos drogados, mas na destruição dos neurônios de cada qual. Em suma, a atividade dos milicianos é alguma coisa de supinamente extravagante, pois não se enfrenta o crack com cassetete e bombas de efeito moral. Há viciados tão profundamente enraizados que sequer sentem dor a uma “borrachada”. Apanham e pedem mais droga, desde que ela venha.

Hely Lopes Meireles foi grande administrativista. Ainda existe quem use seus livros. Correu o seriíssimo risco de jogar no lixo toda sua obra quando, Secretário da Justiça em São Paulo, coonestou o chamado “Esquadrão da Morte”, afincadamente combatido por Hélio Bicudo, ainda vivo e lúcido. Lemos sua obra repetidas vezes.Em São Paulo havia o “Esquadrão da Morte”, no Rio pontificava  a “Escuderia Le Coq”, cuidando-se de duas instituições dedicadas ao trucidamento de bandidos. Em suma, o lixão. Alguns extremados críticos afirmariam que traficantes merecem morte rápida e impactante, sem benevolência ou piedade qualquer. A idéia é até sedutora, mas a obediência ao organograma jurídico obriga à submissão ao sistema legal. Além disso, a experiência com as duas organizações já citadas demonstrou a existência paralela do fator corruptivo. Aquilo que começara como guerra santa teria sido absorvido pela derrama dos dinheiros da traficância. Exemplo atual, no Rio de Janeiro, é ofertado pelas chamadas “milícias”, ainda atuando nas favelas.

Ao lado disso tudo parece existir conflito político subjacente entre o Governo do Estado e possível planificação advinda do Poder Executivo Federal. Uma espécie de antecipação de briga por dominação de atividades saneadoras. Consta que haveria rebeldia dissimulada à execução de plano nacional de combate ao tráfico e à dependência química por crack, enfocando primeiramente as grandes capitais brasileiras. Se verdade não for, leva jeito de o ser. Finalize-se afirmando que o crime habitual é eterno. Funciona à maneira de pereba infectada que não sara nunca, podendo ser contida ou mantida adequadamente com administração de antibióticos eficazes. Fala-se do permanente conflito entre o bem e o mal. O esmorecimento no combate transforma a ferida em doença contagiosa e extensa. A sabedoria dos criminólogos se concentra em resistência acentuada à doença, conscientes todos de nunca se obter a purificação total mas cônscios da necessidade de obtenção de razoável equilíbrio. Funciona assim. A anômala escaramuça encetada pela Polícia Militar do Estado na cracolândia constitui ausência mínima de premonição. Não se estava a atacar bandidos, mas “quilombolas”. Em alguns momentos da história do país, e mesmo nos genocídios praticados no Congo, Sudão e quejandos, viram-se grupelhos de resistentes empunhando porretes e facões enquanto resistiam a militares fortemente armados. Aquilo tudo, inclusive o destemor, era estimulado pelo “haxixe”. A cracolândia é mais ou menos assim, com diferenças marcantes, porque o dependente é capaz de ser pisoteado, surrado e morto mas, morrendo embora, reage passivamente, pedindo um pouco de droga, pelo amor de Deus (ou do Capeta).

Não se afirma que o desastre é fruto de burrice. Não valeria a pena.

* Crônica recusada pelo “O Estado de S. Paulo”

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