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Pulmão de aço

* Paulo Sérgio Leite Fernandes
**Gustavo Bayer
Pulmão de aço***

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Meses atrás, houve notícia sobre advogada paulista cega que venceu o metrô, obrigando a empresa a aceitá-la, mais o cão, nas viagens subterrâneas (v. Ponto Final “Os cães pensam que pensam – Thays Martinez lança obra na Livraria Cultura”). Publicou-se a fotografia da moça e do cachorro, ela olhando para algum lugar, talvez para o infinito, sabendo-se que a imaginação, se e quando alguma vez a visão a socorreu, daria à jovem a medida da realidade, mais difícil, é certo, se e quando a cegueira é de nascença. O tato, provavelmente, ofereceria, nas circunstâncias últimas, uma proporção inexata do rosto dos outros e, quiçá, da própria face. É terrível mas, ao mesmo tempo, é instigante, porque a fantasia conduz a construções mentais quase inimagináveis por terceiros. Tocante a criaturas pintalgadas por outras formas de infelicidade, vale a pena pensar na figura do físico Stephen Hawking, ainda vivo, movimentando um dedo só, ou quem sabe nem este, mas pesquisando o universo inteiro enquanto grudado na sua cadeira eletrônica. Centenas e centenas de criaturas superam problemas assemelhados, construindo, às vezes, perspectivas novas para a humanidade.

O pensamento vem a propósito da notícia sobre Eliana Zagui, deitada numa cama da UTI do Hospital das Clínicas de São Paulo há 36 anos. Paralítica desde os 2, não se mexe do pescoço para baixo. Respira com equipamentos. No meio tempo, aprendeu idiomas estrangeiros, estudou história da arte e é pintora. Hoje, 10 de abril de 2012, lança o livro que dá nome à crônica: “Pulmão de aço”. Para quem não sabe, ela escreve com a boca. E bem. O lançamento é só para convidados, mas a escritora deve ter a aplaudi-la todos aqueles que a viram na internet ou que dela ouviram falar.

A menina – e hoje, aos 38 anos, o ser humano é muito moço – dá tremendo exemplo de persistência, amor à vida e esperança. Na verdade, nós vivemos esperando que algo bom aconteça. Ou, ao menos, que algo aconteça. Vale a pena, nesse contexto, um ajoelhamento qualquer no silêncio de uma igreja deserta, num canto de uma tenda de umbanda, num reduto de grupamento estudioso dos mistérios espíritas, num templo budista ou mesmo nas múltiplas sinagogas e mesquitas existentes por aí, não se excetuando, inclusive, as seitas marginais postas nas esquinas do entremeio do estrépito e da fumaça exalada dos canos de escapamento poluentes das metrópoles. Olhando a fotografia da escritora Eliana Zagui, aqueles outros beneficiados pela higidez física devem, sim, em genuflexão, agradecer as benesses advindas de uma predestinação qualquer, aprendendo, em contrição, a viver a vida com um pouco mais de alegria e desfrutamento da capacidade que a outra não teve. Se houvesse – e de repente há – a possibilidade de conjunção de energias tendentes ao aperfeiçoamento da arte de curar, o mundo todo daria as mãos no sentido de a moça desencasular o corpo, cumprindo os projetos das suas fabulações. Se não for isto possível, tenha a certeza de que todos, mas todos mesmo, a aplaudem com todo o fervor do coração.

* Advogado criminalista em São Paulo há cinquenta e dois anos.

** Áudio e vídeo

*** O texto é de única e absoluta responsabilidade do autor Paulo Sérgio Leite Fernandes. O intérprete Gustavo Bayer é apenas o ator.

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