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Hélio Bialski morreu

* Paulo Sérgio Leite Fernandes
**Gustavo Bayer
Hélio Bialski morreu***

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Hélio Biaslki tinha 70 anos. Sentira algumas dores no peito, medicou-se mas morreu de repente, à maneira dos guerreiros, não devagarzinho no leito da UTI ou em casa, definhando aos poucos. Todo criminalista deveria partir vestindo o camisolão negro, a beca, no entremeio de uma peroração dirigida aos tribunais naqueles sombrios plenários que fazem as vezes das catedrais, uns limpos, outros empoeirados. O mobiliário escuro, aliás, foi sempre o preferido dos advogados criminais, pois serve melhor aos debates sobre as tristezas, os dramas e o vermelho do sangue vertendo durante os entrechoques violentos entre as reivindicações resistidas da alma. Sempre que falo em crimes, relembro “Carmen”, de Bizet, original em francês, ela vítima da sevilhana de alguém que se enciumara do toureiro famoso.

A propósito das paixões, relembro excelente criminalista, amigo meu, ex-Secretário de Justiça do Estado de São Paulo, com quem desci as escadas do Tribunal de Justiça, anos atrás, após sustentações orais de nós dois nas quais, cada um a seu turno, havíamos sido derrotados. Ele estava transtornado. Devo ter sido o último advogado, fora os filhos, a vê-lo vivo. Morreu naquela noite, numa reação solitária.

Criminalistas são assim. Vão-se para o outro lado num minuto só. Não ficam babando em guardanapos de linho ou tecidos sintéticos adquiridos em lojas especializadas. Hélio Biaslki, judeu respeitado dentro e fora da colônia israelita paulista, que é grande, teve o enterro muito concorrido, no cemitério israelita de São Paulo. Não costumo ir a despedidas de defuntos. Se possível, não compareço à minha. Entretanto, os confrades merecem o abraço final, embora, na velhice, homens e mulheres fujam das condolências. A velha advocacia criminal paulista estava lá, a se abraçar, procurando assunto que não fosse aquele ligado à grande bruxa, única mulher que odeio com todas as forças do meu coração. Num certo sentido, ela é infalível, indestrutível e indesejável. Mas vem sempre. Cumprimentamo-nos todos, os velhos, na imensidão daquele cemitério. Hélio foi inumado na tradição judaica. Havia poucos jovens. Todos, de acordo com o ritual, receberam o “kipá”. Não lhe conheço a origem, mas serve a proteger os espaços vazios do crânio, pondo-se sobre a glabela. Havia um cirurgião plástico meu amigo que praticava uma incisão superficial no couro cabeludo, na região indicada, para permitir a oxigenação do local e retardar a calvície. De repente, o “kipá” também serve para isso, ou ao menos para aquecer o crânio.

O campo-santo onde o corpo de Hélio Bialski foi inumado é enorme. Não tem túmulos com ápices pontiagudos, à maneira dos católicos. São pequenas caixas de metal ou material outro, sob a grama, assemelhadamente àquelas necrópoles destinadas a militares mortos na guerra. Melhor assim…

Não sei quantos filhos Hélio Bialski deixou. Conheci só um, o Daniel, apto como o pai na arte da advocacia criminal. O moço é muito bom orador e há de prosseguir, com horizonte mais amplo, no exercício do ministério. Vi o herdeiro ao longe. Havia povo demais em volta. Não briguei para chegar mais perto. Daniel, se respeitando o “Torá”, vai purgar o luto à maneira judaica. Se for outra a vocação, ele e os demais havemos de lamentar bastante, mas dias desses o sol há de brilhar novamente, pois assim é a vida. “La nave va”.

A propósito, não devolvi o “kipá”. Quando cobrado, à saída, respondi: “– O vento levou”.

* Advogado criminalista em São Paulo há cinquenta e dois anos.

** Áudio e vídeo

*** O texto é de única e absoluta responsabilidade do autor Paulo Sérgio Leite Fernandes. O intérprete Gustavo Bayer é apenas o ator.

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