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Demóstenes foi cassado – Não se bate em cachorro morto

Paulo Sérgio Leite Fernandes

Há anos acompanho a vida do ex-senador Demóstenes, não por deméritos pessoais dele, mas pelos extremos a que se deixava levar na arte da censura. Por exemplo: defendia a pena de morte e a castração dos praticantes de crimes sexuais. Havia alguma coisa a ver com restrição às liberdades individuais. Parei de bater no homem a partir do momento em que começou a se desgraçar. Lembro-me de ter usado, no meio de meu combate, a expressão advinda de Edu Lobo e outro: “Procurando bem, todo mundo tem pereba, só a bailarina é que não tem”. Nas contradições da alma de quem já envelheceu, a vida pede, no conflito entre Davi e Golias, que sempre se procure o gigante nos entreveros. Em suma, não se briga com o garçom do restaurante, o engraxate, a doméstica e o morador de rua. E não se agride político cassado. Tais criaturas merecem um respeito enorme, porque, de um lado, são infelicitadas e, de outro, não têm como resistir. Há algumas razões subjacentes, mas não vêm ao texto, embora relevantes: o garçom ofendido pode cuspir no prato, a empregada doméstica mancha a roupa da patroa e o mendigo envenena o gato de estimação. O parlamentar caído em opróbrio pode voltar, Maria Antonieta, segundo a lenda, teria oferecido brioches ao povo. É mentira. Ela era doida, mas não tanto. Apesar disso, cortaram-lhe primeiro os cabelos (embaraçavam a lâmina de Madame Guilhotina). Foi-se depois o pescoço real.

Isso parece não ter relação com a cassação do senador Demóstenes Torres, mas tem. Como disse, parei de agredi-lo a partir do começo da sua infâmia. Já era, àquela altura, um desesperado buscando salvação. Não se bate em cachorro morto. Entretanto, nas raríssimas oportunidades em que vi, aqui e ali, pedaços do debate tendente ao guilhotinamento do promotor de justiça em causa, restou mesmo uma sorte qualquer de repugnância enquanto via um ou outro senador, quase babando de ódio, investindo contra Catilina. Lá atrás, na antiguidade romana, Cícero, mais adiante com língua e pescoço cortados, espetava o indicador no espaço e invectivava: “-Até quanto, Catilina, abusarás da nossa paciência?”. Houve isso no Senado, uns morigerados e obedientes às regras do Areópago, outros desequilibrados, desesperados até, buscando, no espancamento do infeliz, um pedaço de espaço na mídia, aquela medusa horrorosa a despedaçar em poucos segundos a dignidade do ser humano, enlaçando-o nas mil serpentes constitutivas da sua horrenda cabeleira. No meio daquilo tudo, um senador gritava neuroticamente, outro procurava ensurdecer o plenário com suas acusações e a maioria, já convencida de estar num velório, observava, sempre em silêncio. Havia um moço, entretanto, com menos idade que filho meu mais novo, pontificando nas acusações. Tinha cara de menino, sim, mas em princípio, no Senado, na Câmara e em outros rincões, alguém pode remoçar dez anos se auxiliado por cirurgião competente ou com “botox” reforçado a cada seis meses.  Prestei atenção na figura. Era um rapazelho. Hoje em dia, aos 40, a criatura mal começou a viver. Dentro de tal contexto, o Senador Randolph Rodrigues é uma criança, mas agressivo desmedidamente contra um Demóstenes posto na churrasqueira. Não era preciso fazer tanto, nem concorrer afincadamente para o desmoronamento do adversário que já chegava com um aleijão incurável. O mais impressionante, entretanto, foi a incompatibilidade teórica entre o rosto do rapaz e o chicoteamento compulsivo. Um senador da República sim, o mais jovem, segundo se afirma, exemplar na austeridade mas inexperiente nas armadilhas que a vida traz. Os antigos sabem: na existência, há sempre um inimigo atrás da porta. O bom juiz pode ser severo, é claro, mais precisa respeitar o réu. A história consagra, no nome Catão, a imagem do censor. Eram dois, um descendente do outro. Tiveram destino ruim. Vale o comentário para o estreante Randolph e para aqueles tantos a se desbordarem, mordendo a bainha da calça do acusado como grupo de selvagens ensandecidos. Dir-se-iam encarregados do serviço sujo. Não se justifica a ferocidade. Demóstenes, o ferreteado, estava exposto à visitação pública. Com ou sem razão, pouco importa, mas a carroça ferrugenta já serpenteava pelas ruas estreitas de Paris. O homem já estava morto, embora resistindo até o fim. Dir-se-á que Demóstenes Torres é um bandido. O menino senador, mesmo que assim fosse, estava a lhe negar a última refeição consistente no respeito à dignidade do ser humano. Lá na frente, com os cabelos encanecidos, o rapaz há de pensar nisso. Aprenderá, então, o sentido exato da palavra morigeração. Alguns chegam lá a tempo certo. Outros não. Tudo tem preço. É pagá-lo, quando cobrado. A volta do bumerangue é fatal.

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