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O rei e a rainha estão nus – O teste do bafômetro

Paulo Sérgio Leite Fernandes 

A madrugada de 12 de julho de 2012 não começou adequadamente. Aliás, em São Paulo, todo raiar do dia é esquisito. De um lado, as chamadas “forças do bem”; de outra parte, o lobisomem, representado pelos trânsfugas a se ocultarem nas sombras deixadas pela iluminação ruim, sabendo-se que morcegos e bichos assemelhados odeiam a luz. Vai daí, uma desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho voltava com a filha e outras pessoas do concerto realizado pelo violinista André Rieu, mais orquestra, no Ginásio do Ibirapuera. Não uma realização excepcional, diga-se de passagem, mas um clássico sobrevivente dos anos dourados, época que a meninada nem imagina como foi. A eminente juíza não guiava. A filha o fazia. Funciona assim. Uma juíza circunspecta, ainda sob os eflúvios de Aranjuez. É bom sonhar. À frente, um magote de policiais militares, os mesmos que protegem de vez em quando e quase sempre fazem muito mal, porque desrespeitam direitos mínimos do cidadão. Traziam um artefato esquisito, espécie de restolho do Milk-Shake que descontrola o metabolismo dos frequentadores de academias. A maquineta tinha um canudinho. O “meganha” queria que a mocinha soprasse o canudo. A menina recusou, com razão, não só por não saber donde vinha o artefato (não tinha certificado da ANVISA e, se tivesse, seria posto sob suspeita), mas porque tinha o direito de não o fazer, não se pensando, sequer, que teria ingerido bebida alcoólica, pois não se mistura André Rieu e cachaça. Além disso, embora se afirme que o chamado bafômetro é asséptico, não guardando contato algum com bactérias bucais, já se viu afirmativa, provinda de cientistas da NASA, no sentido de os micróbios anaeróbios resistirem, no espaço sideral, a cento e quarenta toneladas de pressão. Eu disse isso em casa, faz tempo, entes da notícia oficial. Minha mulher afirmou que eu estava a fabular. Não estava. A ciência, mais tarde, confirmou minha intuição.

Volte-se à filha da desembargadora. Se os microbiologistas, lidando com a estratosfera, chegavam a determinada conclusão, embora se tratando de um invólucro certificada pela PM, ela não ia meter a boca naquela coisa. Nem ela, nem eu, e nenhum cidadão genioso o faria. Foi um desastre. A jovem, a certa altura, pode ter dito à desembargadora: “- Mãe, mostra pra ele quem somos”. Polícia Militar não pode ser desacatado. Se a presidente Dilma enfrentar um soldado, força reserva do exército nacional, vai pro pote, pois ele é, sabidamente, auxiliar direto do setor mais poderoso que o Brasil tem hoje. Dentro do contexto, a magistrada, a filha e as convidadas ficaram na rua da amargura. Deveriam saber – e não sabem – que a chamada transparência inaugurada pelo Supremo Tribunal Federal, enquanto exibia seus ministros ao povo, deixou o rei e a rainha nus, fundando-se a vilania na chamada igualdade de todos perante a lei. Todos são iguais, sim. Daí a razão de o repressor precisar ter seus limites. A desembargadora ainda entendia que a toga protege o magistrado, a beca defende o advogado, a bata branca nobilita o médico, a sirene da ambulância abre passagem para o resgate e, no fim das contas, o Poder Judiciário interpreta a lei para que todos a obedeçam. A culpa disso tudo é do próprio juiz que se abastardou enquanto se irmanava com inquisidor, largando a vestimenta negra e calçando o coturno do beleguim; a culpa disso tudo é do pretor que deixou de respeitar direitos e garantias individuais, acolitando o violador de lares e do quarto de dormir de investigados, inocentes ou não, pouco importa, mas crentes, ainda, na vigência da Carta das Liberdades de João-Sem-Terra, nos idos de 1215: “- My House, My Castle”. A culpa disso tudo é a exposição pública de uma instituição que tem pecadilhos sim – todos os têm –, permitindo que um pedaço difamador da imprensa transforme o juiz em parlapatão, expondo-o na capa de semanário mostrado em milhares de bancas de jornais. O desnudamento da toga é, psicanaliticamente, a morte do pai. Isso já aconteceu e acontece pelo mundo afora, a exemplo da Revolução Francesa de 1789. Ali, na chamada queda da Bastilha, o populacho sacrificou a guarnição constituída por alguns aleijados, depois de lhes ter sido prometida a salvação. Havia apenas oito presos. Um deles era o Marquês de Sade, sobrevivendo para se tornar, agora, presença cativa no universo dos dicionários. A Convenção desenfreada aspergiu sangue torrencialmente nos degraus de Madame Guilhotina, cabeças e cabeças rolando, olhos virando pra lá e pra cá enquanto fingiam perscrutar a multidão histérica gargalhando na praça satânica. Na Assembléia, enquanto ressoava o trinômio “Libertè, Égalité, Fraternité”, Danton, Marat, Robespierre, Saint-Just e muitos outros, na ordem ou em desordem, perderam o pescoço. Marat ainda teve um pouco de romantismo: matou-o Charlotte Corday, uma jacobina, num espetáculo até hoje pouco explicado mas, havendo mulher no meio, a interpretação nunca é simples.

Perceba-se: o episódio começa num bafômetro e termina na Revolução Francesa. Parece não haver ligação entre o objeto e o fenômeno francês, mas há sim. Dentro do contexto, a Polícia Militar não respeita a toga, o soldado enfia o canudo entre os lábios da cidadã, o pasquim transforma um ministro em palhaço, a autoridade do magistrado é reduzida a pó e o povo, dançando valsa tétrica entre o medo do poder e o ódio votado ao bem-nascido, gargalha enquanto tropeça nos corpos dos decapitados. Hoje, segundo o vate popular, é “o dia da caça”. Amanhã é “o do caçador”. Ou é o dia da marquesa; amanhã é a hora do camponês. Há uma diferença: a marquesa morre sob a espada. O campônio é enforcado, não sem antes lhe tomarem as galinhas, suas panelas, seus tostões escondidos no cofrinho e a dignidade, porque morreu sem conseguir pagar as contas. Que tragédia! Tudo por causa de um bafômetro. Tocante a este, há várias espécies. Confiáveis, quem sabe, quanto à medição do teor alcoólico no pulmão do examinando mas nunca assegurados um por um na relação com a assepsia. Não se sabe quem, quando e como tocou anteriormente o artefato nem mesmo se alguém, em vez de soprar, aspirou. Não se questiona o canudo mas os resíduos ficantes no aparelho. Não há quem responda isso na internet.

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